#113. Na pauta do STJ: venda a non domino
Em novembro de 2023, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou o REsp nº 2.091.432/MG, relatado pela Ministra Nancy Andrighi. Os fatos discutidos eram bastante simples e levaram a decisão igualmente singela, mas repleta de nuances.
Em 2014, foi celebrado determinado contrato de promessa de compra e venda de um apartamento em Belo Horizonte (“Primeira Operação”). Em 2017, os mesmos vendedores que haviam prometido o imóvel à venda celebraram com terceiros um outro contrato de promessa de compra e venda que, segundo o narrado da decisão, foi posteriormente tornado definitivo por escritura pública de compra e venda (“Segunda Operação”). Nenhum contrato foi levado a registro.
O imbróglio teve início quando o promitente comprador da Primeira Operação ajuizou ação de adjudicação compulsória em face dos promitentes vendedores. Os compradores da Segunda Operação opuseram embargos de terceiro, em que sustentaram a sua boa-fé e o seu direito de registrar a compra e venda para obtenção da transferência imobiliária.
O cerne da discussão jurídica travada nas instâncias inferiores e no STJ estava no enquadramento da Segunda Operação como compra e venda a non domino e as possíveis consequências que adviriam desta qualificação.
A decisão afastou a configuração de venda a non domino. Assim se fez por considerar que, ausente o registro da Primeira Operação, não tinha havido constituição do direito real de aquisição em prol do promitente comprador nem se transferido a propriedade. Na Segunda Operação, portanto, haviam figurado como vendedores aqueles em cujo nome o imóvel estava registrado. Consta do acórdão, ainda, nota particular: antes do pedido de adjudicação, fora registrada alienação fiduciária sobre o bem em favor da Caixa Econômica Federal e a dívida foi assumida pelos segundos compradores.1
Desse cenário, emergem dois temas que foram tratados no acórdão de forma mais aprofundada. Em primeiro lugar, a distinção dos efeitos registrais do compromisso de compra e venda e do contrato de compra e venda; em segundo lugar, o conceito, o alcance e o regime consequencial que afeta a venda realizada por quem não é dono (a venda a non domino).2
Registro do contrato de compra e venda vs. registro do compromisso de compra e venda
O voto da Ministra Nancy Andrighi diferencia o contrato de compra e venda da promessa de compra e venda: enquanto no primeiro um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de uma coisa, no segundo há obrigação de celebrar contrato definitivo.
É verdade que ambos os contratos podem ser levados a registro, mas o efeito que se produzirá a partir daí é distinto.
Como se sabe, a compra e venda é contrato consensual no Direito brasileiro e o simples acordo de vontade entre as partes não tem aptidão para gerar a transferência de propriedade, embora produza efeitos obrigacionais entre os contratantes. O registro ou transcrição imobiliária, nos termos do art. 1.245 CC3, é que conduzirá à transferência da propriedade imobiliária.
No caso do compromisso de compra e venda, que consubstancia uma obrigação de fazer, a Ministra Nancy Andrighi vai direto ao aponto e afirma que seu registro gerará ao adquirente o direito real de aquisição, desde que inexistente cláusula de arrependimento, nos termos do art. 1.417, CC4. A falta de registro, por sua vez, não deixará com que o compromisso de compra e venda produza pleno efeito entre as partes, mas impedirá a produção de efeitos erga omnes.
Por efeitos erga omnes do registro do compromisso de compra e venda entende-se a possibilidade de que o promitente comprador titular de direito real possa exigir a entrega do bem inclusive em face de novo proprietário, terceiro que não figurou no contrato anteriormente celebrado. Eis um ponto de atenção que deve ser sublinhado.
Quando exercido o direito à adjudicação compulsória em face do promitente vendedor, será indiferente que esteja ou não registrado, como já consolidado em remansosa jurisprudência que encontra síntese no enunciado sumular n. 239 do STJ: “o direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.”
A despeito da já longeva jurisprudência nesse sentido, não é incomum haver indeferimento de pedido de adjudicação compulsória quando ausente o registro. Prova disso é julgamento do AgInt no AREsp n. 2.437.168/SP da Quarta Turma do STJ, de março de 2024, em que se reformou entendimento de Tribunal a quo para (re)afirmar a desnecessidade do registro.
O registro será necessário, porém, quando intentada em face do proprietário que não tenha participado da avença. A legitimidade do adquirente para responder à ação de adjudicação compulsória dependerá do prévio registro do compromisso e da constituição de direito real de aquisição. Sobre o tema, remete-se à decisão contemporânea, de relatoria também da Ministra Nancy Andrighi, no sentido de que “a ausência de registro obstará a adjudicação compulsória se o mesmo imóvel for alienado a terceiro mediante contrato registrado no Registro de Imóveis” (REsp n. 2.095.461/MG).
Venda a non domino
Nos termos da decisão, a venda non domino ocorre quando celebrada por quem não seja titular do bem. No caso de bens imóveis, isso se dá quando o vendedor ou promitente vendedor não seja proprietário registral do bem. In verbis: “a venda a non domino é realizada por quem não detém a propriedade da coisa, mas é existente, válida e eficaz entre os contratantes, sendo apenas ineficaz em face do proprietário do bem”.
No caso em discussão, conforme consta do acórdão, o vendedor do imóvel continuava a ser o seu proprietário registral e possuía legitimidade para realizar a transferência do bem de forma eficaz.5 A bem da verdade, ainda que a Primeira Operação tivesse sido registrada, o seu efeito não teria o condão de transferir a propriedade ao promitente comprador, mas tão somente de constituir o direito real de aquisição.
A despeito de não ter qualificado a venda como a non domino, a decisão trouxe importantes considerações a respeito dela. Mais precisamente, a compra e venda celebrada por vendedor que não seja titular do bem é válida?
A discussão frequenta a Corte há bastante tempo.
Em sentido contrário à posição do acórdão objeto da coluna, no qual se afirmou (incidentalmente) ser plenamente válida a venda a non domino, menção pode ser feita a duas decisões, representativas de um universo maior, que entenderam pela nulidade da venda a non domino:
“Na hipótese de venda a ‘non domino’, a transferência da propriedade negociada não ocorre, pois o negócio não produz efeito algum, padecendo de nulidade absoluta, impossível de ser convalidada, sendo irrelevante a boa-fé do adquirente. Os negócios jurídicos absolutamente nulos não produzem efeitos jurídicos, não são suscetíveis de confirmação, tampouco convalescem com o decurso do tempo. Precedentes. (AgInt nos EDcl no REsp n. 1.811.800/RS, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 12/12/2022, DJe de 14/12/2022).
“O entendimento desta Corte preconiza que, no caso de venda por quem não tem o título de propriedade do bem alienado, venda a non domino não tem mera anulabilidade por vício de consentimento, mas sim nulidade absoluta, impossível de ser convalidada.” (AgInt na AR n. 5.465/TO, relator Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 12/12/2018, DJe de 18/12/2018).
Na doutrina, o contraponto.
Antônio Junqueira de Azevedo ensinava que “(...) o caso de venda a non domino não é de nulidade (plano da validade – falta de requisitos), mas sim de ineficácia (plano da eficácia); há, apenas, ineficácia para os efeitos finais visados pelo negócio (transferência de propriedade). O negócio em si, porém, é válido e, até mesmo, eficaz, como qualquer outro negócio que, realizado, não é cumprido; ele admite rescisão com perdas e danos (e o inadimplemento supõe negócio válido)”.6
Pontes de Miranda, com a acidez que lhe era peculiar, afirmava que, de um lado, “a compra-e-venda a non domino é válida e eficaz, no plano do direito das obrigações, porque a compra-e-venda é negócio jurídico consensual” e, de outro que “não se trata de compra-e-venda nula, solução que revela bem parcos conhecimentos jurídicos nos que a afirmam; nem de compra-e-venda condicional, artifício inadmissível que se vê no acórdão da 2.a Turma do Supremo Tribunal Federal, a 10 de junho de 1947 (R. de J. B., 82, 17)”.7
Interessante explicação dos fundamentos da conclusão é encontrada na doutrina processual de Clarisse Lara Leite, que o faz a partir da óptica do entendimento dominante, que considera que a compra e venda não tem natureza real no Direito brasileiro, e do entendimento por ela defendido, que vê alguma eficácia real na compra e venda.
Sob o primeiro ponto de vista, o efeito meramente obrigacional da compra e venda no nosso direito levaria a concluir que “...admitida a premissa de que a atribuição translativa não coincide com o momento de celebração do contrato, sendo apenas um efeito derivado da sua execução, o fato de a coisa vendida não pertencer ao vendedor não abala sequer minimamente a estrutura do negócio, que se considera perfeitamente realizado mediante o consenso sobre preço e coisa”.8
Mas, ainda que se considere algum efeito real da compra e venda, a conclusão não se altera, pois não se poderia daí concluir pela existência de impossibilidade originária absoluta, causa de invalidade do negócio jurídico nos termos do art. 166, II CC.9 A impossibilidade, se configurada, será meramente relativa.10
A validade da venda a non domino tem efeitos relevantes. O principal deles é de que a obrigação ajustada se mantém exigível e que, não sendo possível o seu cumprimento eficaz, haverá aplicação do regime consequencial do inadimplemento. A qualificação do inadimplemento (e de tudo o que vem junto a ele, como a indenização pela falta ou a incidência de cláusula penal) restaria afastado se houvesse invalidade. Nesse sentido, já tive oportunidade de afirmar que “é pressuposto do adimplemento e do inadimplemento da obrigação que o negócio jurídico seja válido”.11
Por evidente, o verdadeiro proprietário que não participou do negócio jurídico não está a ele vinculado nem pode sofrer seus efeitos. Assim, coisa diversa é a possível invalidação de registro imobiliário que tenha sido realizado (indevidamente) com fundamento em compra e venda a non domino.12
Bônus track: a conversão em pagamento de indenização pecuniária
No caso julgado, reconheceu-se a impossibilidade de cumprimento específico da obrigação de outorgar escritura pública pelo vendedor em favor dos primeiros compradores: “tais circunstâncias obstam a adjudicação compulsória por impossibilidade superveniente, mas fica assegurado ao promitente comprador (recorrente) a indenização por perdas e danos, a ser quantificada em liquidação de sentença”. A remissão à fase de liquidação, por sua vez, coloca dedo em ferida aberta, que tem se apontado com frequência: quais os critérios aplicáveis para essa conversão? Como afirmado na AGIRE #22, também aqui se está diante de em uma liquidação interessante de ser acompanhada de perto.13
Renata Steiner, FCIArb.
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente e parecerista.
Conselheira do Conselho Administrativo da ARBITAC (Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial do Paraná).
Como citar: STEINER, Renata. Na pauta do STJ: venda a non domino. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 113, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire113>. Acesso em DD.MM.AA.
O acórdão não esclarece exatamente como foi realizada a Segunda Operação e, mais precisamente, como poderia ter sido celebrada uma escritura pública pelos vendedores em favor dos segundos compradores, se o imóvel já havia sido alienado fiduciariamente à CEF. Por clareza, reproduz-se trecho do acórdão: “após a primeira promessa de compra e venda o imóvel foi objeto de alienação fiduciária à Caixa Econômica Federal, a qual foi registrada no Registro de Imóveis. Por sua vez, os segundos adquirentes assumiram a dívida perante a CEF. Desse modo, quando exercida a pretensão adjudicatória por meio da propositura desta ação, a propriedade do imóvel já não pertencia aos promitentes vendedores (recorridos), mas sim à CEF, e o direito expectativo de aquisição da propriedade era titularizado pelos segundos adquirentes.”
A coluna é dedicada às alunas e aos alunos da turma de Direito da Propriedade do 2º ano da FGV SP, que foram instados a discutir a qualificação da venda a non domino na avaliação parcial da disciplina ministrada no primeiro semestre de 2024.
Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. § 1 o Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel. § 2 o Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel.
Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel.
Novamente, não há clareza sobre o contexto da operação de alienação fiduciária em garantia em favor da CEF. Ao que tudo indica, contudo, os segundos compradores celebraram os contratos com a anuência da CEF, uma vez que assumiram o pagamento do débito.
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 4ª ed. São Paulo: 2002, p.46, nota de rodapé n. 65. Nesta nota, o autor faz referência crítica à seguinte decisão do Supremo Tribunal Federal: “PRESCRIÇÃO - Venda "a non domino". "É perfeitamente razoável a interpretação segundo a qual se rege pela prescrição do art. 179, e não pela do art. 178, § 92 , n" V, 'b', do Código Civil, a ação de indenização contra quem vendeu coisa que lhe não pertencia. O caso é de nulidade do art. 145, n" li, do Código Civil, e não de anulabilidade por dolo ou simulação" (STF, 1ª T., RE 71.091-BA, j. 8-6-1973, rei. Min. Aliomar Baleeiro, DJU, 10 set. 1973, p. 6517, ementa).
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo VI. § 361, p. 88.
LEITE, Clarisse Frechiani L. Evicção e processo (Coleção Theotonio Negrão). São Paulo: Saraiva, 2013, p. 51.
Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: (…) II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; (…)".
LEITE, Clarisse Frechiani L. Evicção e processo (Coleção Theotonio Negrão). São Paulo: Saraiva, 2013, p. 61.
STEINER, Renata C. Impossibilidade do objeto, invalidade e falta de cumprimento no Direito das Obrigações: diálogos com a solução adotada no Código Civil alemão. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson. (org.). Diálogos sobre Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, v. III, p. 706. A afirmação não desconsidera que, no caso de violação a deveres de boa-fé independentes da prestação (no que se convencionou chamar de violação positiva do contrato), possa haver descumprimento de contrato inválido, pois estes deveres sobrevivem à invalidação. O tema foi tratado por Claus-Wilhelm Canaris em texto pouco difundido no Brasil, ao qual se remete para maiores referências: CANARIS, Claus-Wilhelm. Ansprüche wegen ‘positiver Vertragsverletzung’ und ‘Schultzwirkung für Dritte“ bei nichtige Verträgen, In: JuristenZeitung, 1965.
Para uma compreensão mais apurada da controvérsia, vide explicação sobre a separação relativa dos planos obrigacional e real no Direito brasileiro, tão bem explorada por Clóvis do Couto e Silva. (COUTO E SILVA, Clóvis. A obrigação como processo. São Paulo: Editora FGV, 2007, p. 44 e sg).
Convida-se a conhecer as linhas de pesquisa do Grupo de Estudos Direito Privado: Desafios da Quantificação de Danos, da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo e no qual desenvolvemos pesquisa sobre liquidação de condenações fixadas de forma genérica.