#46. Na pauta do STJ: os efeitos da cessão sobre o regime jurídico do crédito
STJ decide que a cessão de crédito por instituição financeira não altera os juros e encargos originalmente contratados mesmo que o cessionário não integre o Sistema Financeiro Nacional
A questão jurídica em pauta
Cessão de crédito é tema dos mais relevantes.1 De fato, cuida-se de mecanismo por meio do qual se permite a circulação de riquezas e, consequentemente, o fomento da economia. Para tanto, todavia, é essencial que o cessionário seja capaz de avaliar os riscos assumidos na operação, o que só se revela possível se ele puder conhecer, com certeza e precisão, o regime jurídico aplicável ao crédito adquirido.
A questão se torna especialmente relevante nas situações em que a disciplina original do crédito decorre de circunstâncias específicas atinentes à relação jurídica estabelecida entre cedente e cedido. Em tais hipóteses, a dúvida é precisamente esta: a cessão do crédito para cessionário que não faria jus ao regime originalmente estabelecido altera a disciplina aplicável?
O “Em pauta” desta semana apresenta decisão do STJ que enfrentou um específico aspecto dessa discussão: se o crédito titularizado por instituição financeira objeto de cessão conserva o regime dos juros e demais encargos pactuados, ainda que o cessionário não seja instituição financeira ou entidade a ela equiparada.
O caso concreto
Em 2014, massa falida do Banco ABC S.A. ajuizou execução de título extrajudicial em face de DEF S.A. fundada em cédula de crédito bancário, o qual foi transferido no curso da execução, por meio de cessão, para GHI S.A., atualmente incorporada pelo Banco XYZ S.A. Ao ingressar no polo ativo da execução, em 2018, GHI S.A. juntou aos autos planilha atualizada do crédito, da qual constava a cobrança de todos os encargos de acordo com as taxas contratadas com a instituição financeira cedente.
DEF S.A. apresentou impugnação ao cálculo, sob o argumento de que haveria excesso de execução, e requereu o pagamento em dobro dos valores indevidamente cobrados. A seu ver, em razão de a cessionária não integrar o Sistema Financeiro Nacional, não poderiam incidir os encargos contratados para o crédito exequendo, que estaria, portanto, sujeito aos limites estabelecidos pelo Decreto nº 22.626/1933 (Lei de Usura).2 A impugnação foi rejeitada em primeiro grau.
Interposto agravo de instrumento, o Tribunal de Justiça de São Paulo lhe deu parcial provimento para determinar que os encargos originalmente ajustados incidissem apenas até o momento da cessão do crédito, a partir do qual os limites estabelecidos pela Lei de Usura deveriam ser observados. Rejeitou-se, todavia, o pedido de pagamento em dobro dos valores irregularmente cobrados, “uma vez que não se registra na hipótese dos autos a presença de cobrança em desacordo com o quanto previsto pela Cédula de Crédito exequenda, mas sim de impossibilidade de exigência dos encargos nela estabelecidos em momento posterior a cessão de crédito operada”.3
Os embargos de declaração opostos pela cessionária foram rejeitados. Em especial, destaca-se da decisão o registro de que a previsão constante do art. 29, § 1º, da Lei nº 10.931/2004,4 não deveria prevalecer no caso em tela, uma vez que o crédito fora transferido por meio de cessão, não já por endosso em preto, conforme exigido pelo dispositivo.5 Seguiu-se, então, o Recurso Especial em pauta.6
A decisão do STJ
De acordo com o Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, cessão e endosso, de fato, não se confundem: “[a] diferença é que, sendo a Cédula de Crédito Bancário transferida por cessão civil, e não por endosso, não a acompanharão os efeitos típicos dos títulos cambiais, a exemplo da autonomia das obrigações e da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé”. De todo modo, ressaltou o Relator que, nos termos dos arts. 286 e 287 do Código Civil,7 (i) qualquer crédito, conste ou não de título, pode ser objeto de cessão “se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei ou a convenção com o devedor”, e (ii) a cessão do crédito abarca todos os seus acessórios, salvo disposição em contrário.
Nessa direção, ao examinar o caso concreto, concluiu-se que o endosso em preto, posto “indispensável para a conservação das características da Cédula de Crédito Bancário enquanto título cambial, não retira do cessionário que a recebeu por outra forma, a exemplo da cessão civil, o direito de cobrar os juros e demais encargos da dívida na forma originalmente pactuada, ainda que não seja instituição financeira ou entidade a ela equiparada”. Deu-se, ao fim, “provimento ao recurso especial para determinar a manutenção dos encargos da Cédula de Crédito Bancário tal como originalmente pactuados, mesmo após a cessão do respectivo crédito.”
Os desdobramentos
A decisão em comento reconheceu que a cessão não altera a natureza do crédito cedido que, por isso, conserva o regime original de juros e demais encargos contratados, independentemente de quem seja o cessionário. Trata-se, em verdade, de conclusão semelhante a outras já alcançadas em recentes decisões do STF e do STJ que enfrentaram aspectos diversos relativos à natureza do crédito cedido. Duas merecem especial destaque:
Precatório alimentar. O STF fixou tese com repercussão geral (Tema nº 361)8 a partir do julgamento do RE nº 631.537 segundo a qual “a cessão de crédito alimentício não implica a alteração da natureza”. De acordo com o Relator Ministro Marco Aurélio, a natureza alimentar de crédito representado em precatório não é alterada com a sua cessão, “independentemente das qualidades normativas do cessionário e da forma como este veio a assumir a condição de titular", razão pela qual seu pagamento não poderia ser parcelado. Em seu voto, ponderou que a eventual transmudação da natureza do precatório prejudicaria, "justamente, aqueles a quem a Constituição Federal protege na satisfação de direitos – os credores ditos alimentícios. Isso porque, consideradas as condições do mercado, se o crédito perde qualidade que lhe é própria, a viabilizar pagamento preferencial, ocorre a perda de interesse na aquisição ou, ao menos, a diminuição do valor”.9
Crédito condominial. No âmbito do REsp nº 1.570.452/RJ, o STJ entendeu que o crédito condominial cedido a fundo de investimento durante a fase de execução conserva a sua natureza original, com todas as consequências jurídicas daí decorrentes. Na esteira das razões aduzidas pelo Ministro Marco Aurélio no RE nº 631.537, destacou o Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva que “a transmutação da natureza do crédito cedido viria em prejuízo dos próprios condomínios, que se valem da cessão de seus créditos como meio de obtenção de recursos financeiros necessários ao custeio das despesas de conservação da coisa, desonerando, assim, os demais condôminos que mantêm as suas obrigações em dia”.10
A legislação, por sua vez, tem seguido na mesma direção, ratificando a ratio que conduziu à decisão proferida no Recurso Especial comentado, como se depreende de duas leis recentemente publicadas, a saber:
Lei nº 14.112/2020: ao revogar o § 4º, do art. 83,11 da Lei nº 11.101/2005, e introduzir o § 5º12 no mesmo dispositivo, passou-se a reconhecer que os créditos trabalhistas cedidos a terceiros conservam sua posição privilegiada no concurso falimentar, não sendo convertidos em quirografários (como se dava no regime anterior).
Lei nº 14.286/2021: confirmou,13 em seu art. 13, IV, que a cessão de crédito cujo pagamento tenha sido estipulado em moeda estrangeira, nos termos admitidos pelo mesmo dispositivo nos incisos I a III, não altera o seu regime jurídico, inclusive se as partes envolvidas forem residentes no Brasil.14
Como se nota, a jurisprudência do STJ e a legislação caminham, pari passu, em direção à promoção de segurança jurídica, garantindo a estabilização do regime aplicável ao crédito objeto de cessão. Com efeito, uma vez constituído, o crédito se objetifica, autonomiza-se dos sujeitos envolvidos e passa a ser valorado como bem jurídico submetido ao específico regime sob o qual foi instituído, conservando-o, em princípio, até que seja, enfim, satisfeito.
Aline Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela QMUL.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
A cessão de crédito já foi objeto da AGIRE 13, que versou sobre a possibilidade de a citação suprir a ausência de notificação do devedor.
A jurisprudência do STJ sobre os limites à contratação de juros remuneratórios em contratos bancários e civis foram objeto da AGIRE 40.
TJSP, 16ª CDP, AI nº 2149720-80.2018.8.26.0000, Rel. Des. Simões de Vergueiro, j. 18.09.2018.
“Art. 29, § 1º A Cédula de Crédito Bancário será transferível mediante endosso em preto, ao qual se aplicarão, no que couberem, as normas do direito cambiário, caso em que o endossatário, mesmo não sendo instituição financeira ou entidade a ela equiparada, poderá exercer todos os direitos por ela conferidos, inclusive cobrar os juros e demais encargos na forma pactuada na Cédula.”
TJSP, 16ª CDP, ED nº 2149720-80.2018.8.26.0000/50000, Rel. Des. Simões de Vergueiro, j. 31.01.2019.
STJ, 3ª T., REsp nº 1.984.424/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 23.08.2022.
“Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação.”
“Art. 287. Salvo disposição em contrário, na cessão de um crédito abrangem-se todos os seus acessórios.”
Tema 361 - Transmudação da natureza de precatório alimentar em normal em virtude de cessão do direito nele estampado.
STF, Tribunal Pleno, RE nº 631.537, Rel. Min. Marco Aurélio Mello, j. 22.05.2020.
STJ, 3ª T., REsp nº 1.570.452/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 22.09.2020.
“Art. 83, § 4º Os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários.”
"Art. 83, § 5º Para os fins do disposto nesta Lei, os créditos cedidos a qualquer título manterão sua natureza e classificação.”
Semelhante previsão já constava do art. 2º, V, do Decreto-lei nº 857/1969 e do art. 1º, parágrafo único, I, da Lei nº 10.192/2001.
“Art. 13. A estipulação de pagamento em moeda estrangeira de obrigações exequíveis no território nacional é admitida nas seguintes situações: IV. na cessão, na transferência, na delegação, na assunção ou na modificação das obrigações referidas nos incisos I, II e III do caput deste artigo, inclusive se as partes envolvidas forem residentes.”