#82. Na pauta do STJ: declaração antecipada de não cumprimento por incapacidade financeira configura inadimplemento anterior ao termo
O caso concreto
Em fevereiro de 2014, H.L.S. celebrou contrato de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia de unidade imobiliária residencial em Natal, mediante o pagamento de sinal e saldo financiado diretamente com a construtora, a ser pago em 120 parcelas. A unidade foi entregue um mês depois. Em abril do mesmo ano, a construtora cedeu seu direito de crédito para instituição financeira. H.L.S. ficou inadimplente a partir de setembro de 2015 em razão de problemas financeiros, e tentou distratar o negócio; a instituição financeira concordou com o distrato, desde que houvesse a devolução do imóvel e a retenção integral dos valores já adimplidos, com o que H.L.S. não assentiu.
Em junho de 2016, H.L.S. ajuizou ação em face da construtora e da instituição financeira, e pleiteou (i) a extinção do contrato, ao argumento de que não teria mais condições de arcar com as prestações; (ii) a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que respaldaria a restituição de valores adimplidos em caso de resolução do contrato;[1] e (iii) a devolução de 90% da quantia paga, corrigida e atualizada, com retenção, portanto, de 10% pelas requeridas.
A sentença julgou improcedentes os pedidos. Entendeu que, posto se qualificasse a relação havida entre as partes como relação de consumo, o princípio da especialidade imporia a aplicação da Lei nº 9.514/97, pelo que, configurado o inadimplemento do devedor fiduciante, “o bem deve[ria] voltar ao patrimônio jurídico das empresas rés”,[2] afigurando-se incompatível com referido efeito legal o pedido de extinção do contrato.
Irresignado, H.L.S. interpôs recurso de apelação.
A decisão de 2ª instância
A 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte deu parcial provimento ao recurso.[3] Entendeu o colegiado que os art. 26 e 27 da Lei nº 9.514/97 seriam aplicáveis apenas na hipótese de inadimplemento do devedor, não já em caso de “resolução unilateral do contrato principal de compra e venda”, por desistência voluntária, hipótese em que se aplicaria o CDC e, consequentemente, o enunciado da Súmula 543 do STJ, segundo o qual,
“[n]a hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento”.
Nos termos do acórdão, haveria um “direito implícito à resilição unilateral do contrato” em favor do adquirente, o que não impingiria qualquer prejuízo às apeladas, afinal, com a consolidação da propriedade em favor da instituição financeira, poderá ela “proceder à alienação do bem para saldar o passivo do recorrente, resguardando-lhe, ainda, o direito de crédito sobre eventual dívida remanescente”, na forma dos art. 26 e 27, da Lei nº 9.514/97.
A instituição financeira interpôs recurso especial.
A decisão do STJ
A Terceira Turma deu parcial provimento ao recurso, para restabelecer a sentença de improcedência.[4] O voto condutor da Relatora Ministra Nancy Andrighi, seguido à unanimidade, desenvolveu-se a partir de três eixos:
(i) a importância do contrato de alienação fiduciária em garantia no cenário econômico nacional;
(ii) a especialidade da Lei nº 9.514/97 frente ao CDC; e
(iii) os efeitos do inadimplemento antecipado configurado a partir da declaração do devedor de não cumprir a prestação em razão de dificuldades financeiras no âmbito de alienação fiduciária em garantia (sobre inadimplemento antecipado, já se tratou na AGIRE #59 e na AGIRE #68).
Quanto ao primeiro ponto, a Relatora ressaltou a relevância da alienação fiduciária em garantia como instrumento de incentivo e barateamento da concessão de crédito, em razão da segurança que confere ao credor fiduciário. De fato, com a constituição da garantia no registro de imóveis, o credor se torna proprietário fiduciário do bem, e poderá consolidar a propriedade sob sua titularidade e aliená-lo para a satisfação do crédito na hipótese de o fiduciante, constituído em mora, não a purgar.
O voto condutor destacou, ainda, a tese firmada pela 2ª Seção do STJ ao julgar dois recursos especiais – REsp 1.891.498/SP e REsp 1.894.504/SP – atrelados ao Tema 1095, segundo a qual “[e]m contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na Lei nº 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a alocação do Código de Defesa do Consumidor”.
Por fim, ao examinar os fatos, a Ministra Nancy Andrighi qualificou a conduta do adquirente como inadimplemento antecipado e afirmou que, “embora não se trate, ainda, de uma quebra da obrigação principal, o seu futuro incumprimento é certo, o que torna imperiosa a observância do procedimento específico estabelecido nos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/97 para a satisfação da dívida garantida fiduciariamente e devolução do que sobejar ao adquirente”. “Não fosse assim”, ponderou a Ministra, “o tratamento dado aos contratos de compra e venda com alienação fiduciária seria equivalente ao empregado nos contratos de compra e venda sem tal garantia”, além de submeter o vendedor “a maiores riscos, o que, inegavelmente, geraria impactos negativos nos consectários aplicados a esses contratos”.
Faça-se, aqui, um parêntesis. Ao proferir seu voto no âmbito dos REsp 1.891.498/SP e REsp 1.894.504/SP por ocasião da análise do Tema 1095, o Relator Ministro Marco Buzzi reconheceu a existência de precedente no âmbito da Terceira Turma, no qual se entendeu que o pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia por desinteresse do adquirente, ainda que não tenha havido mora no pagamento das prestações, configuraria inadimplemento antecipado do contrato, decorrendo daí a possibilidade de aplicação do disposto nos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/97. Na sequência, todavia, afirmou que tal intelecção não estaria suficientemente madura, inexistindo, até aquele momento, debate qualificado no colegiado da Quarta Turma, pelo que não deveria ser contemplada na tese repetitiva. De todo modo, ao fim, o Min. Marco Buzzi se manifestou, in obter dictum, pela inaplicabilidade da tese firmada às situações de inadimplemento antecipado, pois, a seu ver, “o inadimplemento, para fins de aplicação dos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/1997, restringe-se à ausência de pagamento, pelo devedor fiduciário, no tempo, modo e lugar convencionados (mora), não estando abrangido o comportamento contrário à continuidade da avença”.
Três reflexões a partir do caso
A análise dos fatos narrados e das decisões relatadas conduz a três reflexões necessárias:
1. O desenvolvimento do mercado de crédito está diretamente ligado ao aprimoramento das garantias de cumprimento
A advertência já foi feita na AGIRE #10 mas, dada a sua relevância e a dificuldade que por vezes se verifica quanto à sua compreensão e apreensão, convém reforçar: a oferta de crédito depende da concessão, ao credor, de garantias que proporcionem a máxima efetividade de seu direito com o menor ônus possível ao devedor.[5] A alienação fiduciária de bens imóveis, que surgiu com a promessa de desburocratizar e agilizar a satisfação do credor, só será capaz de contribuir para a promoção do mercado de crédito se se conferir efetividade ao regime jurídico previsto em lei, garantindo-se a sua plena incidência aos casos em que for aplicável – sem descurar, evidentemente, da análise sistemática do ordenamento jurídico.
2. Não existe um “direito implícito à resilição unilateral do contrato” com prazo determinado
A força obrigatória dos contratos impõe às partes o cumprimento das prestações, não lhes sendo dado desistir do quanto ajustado em contratos com prazo determinado, nem mesmo em razão de insuficiência financeira para arcar com as obrigações assumidas. Eventual tentativa nessa direção importa violação do contrato, que poderá se qualificar como mora ou inadimplemento absoluto conforme a prestação ainda seja possível e útil ao credor, atraindo o regime consequencial pertinente.[6] Com efeito, para que o contratante possa se desvincular do negócio antes do termo ajustado, é imprescindível que o contrato o admita, o que, de regra, se veicula por meio de cláusula de arrependimento. Nesse caso, no mais das vezes, faculta-se a uma ou a ambas as partes, mediante o pagamento de multa penitencial, a resilição do contrato durante o prazo ordinário de vigência.[7] A multa penitencial nada mais é do que o preço a ser pago pelo arrependimento, que não configura, portanto, inadimplemento, consistindo em lícito exercício de direito contratualmente previsto.
3. A declaração do devedor de não cumprir a prestação anunciada antes do advento do termo configura, sim, inadimplemento antecipado
Pouco importa se o motivo da declaração é a incapacidade do devedor de cumprir a prestação em razão da deterioração da sua situação financeira. Referida justificativa encerra circunstância individual e subjetiva do devedor, que não configura hipótese de impossibilidade da prestação,[8] sendo incapaz de afastar a configuração do inadimplemento. O que importa é que a recusa em adimplir revela, desde já, que o credor não obterá a prestação a que faz jus, a inviabilizar a obtenção espontânea do resultado útil programado. Há, em verdade, violação atual da prestação devida (vale dizer, efetiva quebra da obrigação principal), razão pela qual o devedor perde o benefício do termo, que deixa de ser capaz de exercer sua precípua função (qual seja, conferir-lhe prazo para adimplir o que lhe incumbe). Demonstrada a violação da prestação e sua consequente exigibilidade, estará configurado o inadimplemento do devedor, a autorizar o credor a pleitear os remédios colocados à sua disposição para proteger seus interesses, conforme se trate de mora antecipada ou inadimplemento absoluto antecipado.
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
[1] CDC, art. 53. “Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.”
[2] 13ª Vara Cível da Comarca de Natal, Juíza de Direito Rossana Alzir Diogenes Macedo, processo nº 0823087-93.2016.8.20.5001, j. 13.03.2020.
[3] TJRN, 2ª Câmara Cível, Rel. Des. Virgílio Macedo Jr., Ap. Cível nº 0823087-93.2016.8.20.5001, j. 15.04.2021.
[4] STJ, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, REsp. 2.042.232/RN, j. 22.08.2023.
[5] José Carlos Moreira Alves, Da Alienação Fiduciária em Garantia, 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 1.
[6] Sobre a Lei dos Distratos, confira-se Aline de Miranda Valverde Terra; Roberta Mauro Medina Maia. Notas sobre a natureza e o regime jurídico da retenção de parcelas autorizada pela Lei dos Distratos. Migalhas. Migalhas de responsabilidade civil. 17 set. 2020. Para a análise detida da irretratabilidade da promessa de compra e venda, veja-se Roberta Mauro Medina Maia, Irretratabilidade e inexecução das promessas de compra e venda diante da Lei nº 13.786/2018 (Lei dos Distratos Imobiliários), Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 22, p. 73-97, out./dez. 2019.
[7] De acordo com Orlando Gomes, a multa penitencial consiste em “compensação pecuniária atribuída à parte que se viu privada da vantagem do contrato porque a outra se arrependeu de o ter celebrado” e, uma vez estipulada, “a parte que faz jus a seu recebimento não pode opor-se à resilição do contrato, visto que o arrependimento da outra é faculdade contratualmente assegurada”. Logo, “pagando a multa, libera-se do vínculo. Não é outra função. (...) A multa penitencial nada tem a ver com a execução do contrato. É devida como compensação do exercício da faculdade de arrependimento. Garante o poder de resilir, de sorte que o contratante arrependido mais não tem a fazer do que pagar a multa, desvinculando-se por seu mero arbítrio” (Orlando Gomes, Contratos, 23. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 186).
[8] Aline de Miranda Valverde Terra, Nem tudo o que reluz é ouro: os riscos de inadimplemento em tempos de pandemia. Estadão. Blog do Fausto. São Paulo. 11 jun. 2020.