#68. O que o credor pode fazer diante do chamado inadimplemento antecipado?
O foco da AGIRE #59 foi a análise dos suportes fáticos do inadimplemento antecipado (ou, mais tecnicamente, do inadimplemento anterior ao termo). Em todas as situações lá examinadas, a depender das concretas circunstâncias fáticas, é possível verificar que a prestação não será adimplida no termo ajustado ou, mesmo que o seja, não será mais útil para o credor. Nesse cenário, a relação obrigacional se revela incapaz de alcançar o resultado útil programado, tornando-se absolutamente estéril. Não se afigura minimamente razoável exigir que o credor se mantenha inerte, aguardando o advento do termo, para, só então, adotar as medidas cabíveis contra o devedor, ao argumento de a obrigação ainda ser inexigível. Considerando que a ordem jurídica, unitária e sistemática, requer coesão e coerência, a questão que se coloca preliminarmente é esta: como superar, tecnicamente, a pendência do termo e, por conseguinte, a inexigibilidade da prestação, para admitir que o credor aja desde logo para buscar tutela para o seu crédito? Superada essa etapa, resta saber: qual o regime consequencial deflagrado a partir do inadimplemento anterior ao termo? Eis o foco desta AGIRE #68.
1. Superação da análise exclusivamente estrutural do termo de adimplemento
Diz-se que na obrigação a termo, a dívida, apesar de existente, afigura-se inexigível. Conforme afirma Pontes de Miranda, “se me obrigo a termo inicial, a minha obrigação ainda não nasceu, nasceu a minha dívida.” Por isso, conclui o autor, “o crédito (= direito) existe, como a dívida; não existe a pretensão e, pois, a obrigação”.[1] A afirmação deve ser examinada com parcimônia, uma vez que não é possível elaborar uma noção unitária de exigibilidade. É preciso individuar o fundamento da inexigibilidade, isto é, o interesse que o termo visa a tutelar concretamente no âmbito da particular relação jurídica, a fim de verificar em que circunstâncias ela se impõe. Assim, à análise estrutural do termo deve-se somar a análise funcional.
Em princípio, interpreta-se o termo contratual em favor do devedor, salvo se do teor do instrumento ou das circunstâncias resultar que se estabeleceu em benefício do credor ou de ambos os contratantes, conforme art. 133 do Código Civil.[2] Trata-se, como leciona Orosimbo Nonato, de aplicação do princípio segundo o qual a convenção se interpreta, in dubio, em favor do obrigado: “mais se favorece a liberação do que a obligatio, o reconhecimento do estado do devedor”.[3]
Desse modo, tem-se que, de regra, o termo implica a inexigibilidade da prestação, a impor um limite ao exercício do direito de crédito, impedindo a cobrança antecipada da prestação. Com efeito, o próprio Código Civil penaliza o credor que exige o adimplemento da obrigação anteriormente ao termo, como consta do art. 939: “[o] credor que demandar o devedor antes de vencida a dívida, fora dos casos em que a lei o permita, ficará obrigado a esperar o tempo que faltava para o vencimento, a descontar os juros correspondentes, embora estipulados, e a pagar as custas em dobro”.
No entanto, não sendo o termo mais capaz de “favorece[r] a liberação” do devedor porque a prestação se tornou impossível de ser cumprida ou, posto possível, tornou-se inútil para o credor, perde por completo a sua função originária, tornando-se ineficaz. E esse é precisamente o caso em análise.
Como se viu na AGIRE #59, todos os suportes fáticos do inadimplemento antecipado importam a violação irremediável da própria prestação devida, o que resulta na perda de função do termo e o torna ineficaz. A prestação passa, então, a ser imediatamente exigível e resta configurado, desde já, o inadimplemento absoluto da obrigação.[4]
2. O regime consequencial do inadimplemento anterior ao termo
Configurado o inadimplemento absoluto antes do termo, abrem-se ao lesado as pretensões que teria como se a prestação tivesse sido inadimplida no termo originalmente ajustado: confere-se a ele a alternativa entre resolver a relação obrigacional e perseguir o seu cumprimento pelo equivalente, nos termos do art. 475 do Código Civil.[5]
2.1. Resolução da relação obrigacional
Optando pela resolução e havendo cláusula resolutiva expressa, poderá o credor resolver a relação obrigacional mediante simples notificação do devedor, conforme abordado na nossa coluna inaugural, a AGIRE #1. Para tanto, deverá constar expressamente da cláusula a obrigação cujo inadimplemento efetivamente se verificou, em observância ao requisito da especificidade.[6] Não é necessário, todavia, haver específica referência à ocorrência de inadimplemento anterior ao termo da referida obrigação; para fins resolutórios, pouco importa o momento em que o inadimplemento absoluto resta configurado, bastando que haja, efetivamente, a impossibilidade ou inutilidade da prestação.
Resolvida a relação obrigacional, produzem-se os efeitos liberatório, restitutório e indenizatório: (i) ambas as partes ficam liberadas de executar suas prestações ainda pendentes; (ii) ambas as partes ficam obrigadas a restituir in natura tudo o que eventualmente hajam recebido em razão do contrato, se isso for compatível com a sua natureza ;[7] e (iii) o devedor inadimplente fica obrigado a indenizar as perdas e danos sofridas pelo credor, com base, de regra, no interesse negativo.[8] Havendo cláusula penal compensatória,[9] poderá o credor executá-la.
2.2 Execução pelo equivalente
De outro lado, elegendo a execução pelo equivalente, mantém-se a relação obrigacional e substitui-se a prestação originalmente atribuída ao devedor pelo seu equivalente pecuniário. Nesse cenário, altera-se o programa contratual, e o nexo de sinalagmaticidade passa a ser estabelecido entre a prestação devida pelo credor e a quantia equivalente à prestação. Há, com efeito, mera modificação da relação obrigacional, que, portanto, não se extingue: o credor continua obrigado a executar a prestação que lhe incumbe e o devedor, a seu turno, passa a ficar obrigado a executar o equivalente pecuniário da obrigação a que estava inicialmente obrigado, mas que se impossibilitou ou se tornou inútil para o credor.
Como se nota, o fato de restar configurado o inadimplemento absoluto não conduz, necessariamente, à correspondente perda do interesse do credor no contrato em si. Diversas são as razões que podem levar o credor a preferir a manutenção da relação obrigacional à resolução, ainda que com seu objeto modificado. É o que se verifica, por exemplo, quando o credor deseja executar a prestação que lhe incumbe, a despeito do inadimplemento absoluto do devedor, ou quando já a executou e não quer recebê-la de volta.[10]
De todo modo, também na execução pelo equivalente o credor fará jus à indenização por perdas e danos, que serão calculadas com base no interesse positivo, e não se confundem com o valor a título de equivalente da prestação inadimplida, cujo cálculo não é tarefa simples.[11]
3. Nota de rodapé: inadimplemento antecipado não é vencimento antecipado
O inadimplemento antecipado não se confunde com o vencimento antecipado da dívida previsto no art. 333 do Código Civil.[12]
De fato, enquanto no primeiro a prestação é irremediavelmente violada, o que torna o termo ineficaz e permite a configuração do inadimplemento absoluto desde já com a incidência do correspondente regime consequencial, no segundo há a mera modificação objetiva da situação do devedor, que não configura pronto incumprimento, mas apenas reduz a possibilidade de recebimento da prestação caso o credor seja obrigado a aguardar até o termo final.[13] Por isso mesmo, o legislador criou o artifício jurídico do vencimento antecipado diante das situações específicas do art. 333 para afastar a inexigibilidade da dívida na pendência do termo e autorizar sua cobrança imediata. De todo modo, vencida antecipadamente a dívida, apenas se o crédito não for satisfeito é que se deflagrará o regime consequencial, que poderá ser aquele da mora ou do inadimplemento absoluto, conforme a prestação ainda seja, ou não, possível para o devedor e útil para o credor.
Aline Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
[1] PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. t. 5, 3. ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, p. 188.
[2] Art. 113. “Nos testamentos, presume-se o prazo em favor do herdeiro, e, nos contratos, em proveito do devedor, salvo, quanto a esses, se do teor do instrumento, ou das circunstâncias, resultar que se estabeleceu a benefício do credor, ou de ambos os contratantes.”
[3] NONATO, Orosimbo. Curso de obrigações. vol. I, 2ª parte, Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 260.
[4] TERRA, Aline de Miranda Valverde. Inadimplemento anterior ao termo. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 79.
[5] Art. 475. “A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.”
[6] “A cláusula resolutiva expressa deve indicar pontualmente a(s) obrigação(ões) cujo descumprimento autorizará sua atuação, a refletir de maneira inequívoca a vontade dos contratantes de se afastar do regime legal da cláusula resolutiva tácita, em favor do regime resolutivo contratualmente ajustado” (TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa. Rio de Janeiro: Forum, 2017, p. 81).
[7] Conforme já se afirmou em outra sede, “[c]uidando-se de contratos de duração, tendo-se em vista que o sinalagma se articula em uma sequência de prestações correspectivas cuja execução é distribuída ao longo do tempo com base no interesse dos contratantes, o inadimplemento superveniente não altera o sinalagma relativo às prestações pregressas regularmente executadas. Enquanto o contrato foi executado, o interesse das partes resultou plenamente satisfeito, e o inadimplemento posterior não compromete o equilíbrio entre as prestações já adimplidas, razão pela qual a resolução não afeta os efeitos produzidos. A regra se aplica, contudo, somente aos contratos em que as prestações de ambos os contratantes sejam de execução continuada ou periódica; basta que uma das duas prestações seja de execução instantânea para que a resolução produza efeitos retroativos, sob pena de configurar-se situação de manifesto desequilíbrio entre as partes” (TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Resolução por inadimplemento: o retorno ao status quo ante e a coerente indenização pelo interesse negativo. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 9, n. 1, 2020, p. 6-7).
[8] A respeito da adoção do interesse negativo como parâmetro para a quantificação da indenização na resolução e de possíveis exceções, confira-se: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Resolução por inadimplemento: o retorno ao status quo ante e a coerente indenização pelo interesse negativo. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 9, n. 1, 2020, p. 9 ss. Em sentido diverso, sustentando que a indenização se pauta pelo interesse positivo na resolução, confira-se STEINER, Renata. Descumprimento contratual: remédios à disposição do credor lesado. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (coord.). Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios. vol II, Rio de Janeiro: Editoria Processo, 2021, p. 338 et seq.
[9] Sobre cláusula penal compensatória, remete-se o leitor para AGIRE #41 e AGIRE #65.
[10] Confira-se, mais detidamente: TERRA, Aline de Miranda Valverde. Execução pelo equivalente como alternativa à resolução: repercussões sobre a responsabilidade civil. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 18, out./dez. 2018, p. 61 et seq.
[11] Sobre o valor do equivalente, veja-se: TERRA, Aline de Miranda Valverde. Execução pelo equivalente como alternativa à resolução: repercussões sobre a responsabilidade civil. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 18, out./dez. 2018, p. 64 et seq. Sobre o cumprimento pelo equivalente, confira-se também AGIRE #26.
[12] Art. 333. “Ao credor assistirá o direito de cobrar a dívida antes de vencido o prazo estipulado no contrato ou marcado neste Código: I - no caso de falência do devedor, ou de concurso de credores; II - se os bens, hipotecados ou empenhados, forem penhorados em execução por outro credor; III - se cessarem, ou se se tornarem insuficientes, as garantias do débito, fidejussórias, ou reais, e o devedor, intimado, se negar a reforçá-las. Parágrafo único. Nos casos deste artigo, se houver, no débito, solidariedade passiva, não se reputará vencido quanto aos outros devedores solventes.”
[13] RODRIGUES, Silvio. Direito civil. vol. II, 30. ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 162.