#130. Compra e venda de participação societária e vícios redibitórios
Por Milena Donato Oliva
A dúvida
Na compra e venda de participação societária, o objeto imediato do negócio são quotas ou ações (ou outro título de participação societária). Daí surge a seguinte dúvida: vício de qualidade relativo à sociedade-alvo atrai a disciplina dos vícios redibitórios? Por exemplo, a aquisição de ações de sociedade que desenvolve atividade hoteleira permite a invocação dos vícios redibitórios em caso de defeito nas fundações de determinado hotel que acarrete sua interdição?
O questionamento é pertinente, pois o objeto da aquisição é a participação societária e não a propriedade do imóvel hoteleiro em si. Por outro lado, quotas ou ações são bens cujo valor sofre os influxos do estado patrimonial da sociedade a que se referem, a suscitar dúvidas acerca da extensão da aplicação da garantia legal nas operações de compra e venda de participação societária.
A garantia legal contra vícios redibitórios, vale lembrar, consiste em regime supletivo, aplicável aos contratos comutativos, que resguarda o adquirente contra imperfeições ocultas, preexistentes à tradição, que tornam o bem transmitido impróprio ao uso a que se destina ou lhe diminuam o valor (art. 441, CC). O tema, aliás, já foi objeto da AGIRE#74. A garantia legal não se aplica a pequenas imperfeições incapazes de afetar a comutatividade do contrato.1
Sem prejuízo da ampla extensão do debate, o presente texto se propõe, em recorte temático, a responder à seguinte indagação: quando a alienação da participação societária for em proporção tal que represente forma indireta de transmissão da empresa ou de ativos específicos haveria a incidência da disciplina legal dos vícios redibitórios quanto a defeitos a estes pertinentes?
Um passo atrás. O que é o negócio jurídico indireto?
É conhecida, de longa data, a figura do negócio jurídico indireto, em que as partes se valem de estrutura típica para alcançar escopo diverso do normalmente realizado por intermédio do negócio adotado.2 Assim ocorre, por exemplo, com a compra e venda com cláusula de retrovenda que funciona como mútuo com garantia real.
A utilização de tipos contratuais para o alcance de finalidade diversa daquela idealizada pelo legislador não consubstancia simulação.3 A vontade no negócio indireto é séria, os contratantes desejam o ajuste com as suas consequências jurídicas, ainda que se sirvam dele para finalidade diversa.4
Entretanto, e essa é a peculiaridade dos negócios indiretos, além dos efeitos típicos, próprios da estrutura eleita pelas partes, há também os efeitos pertinentes à função por elas perseguida. Afinal, as partes desejam os efeitos típicos do negócio celebrado para a realização de função distinta daquela típica, a atrair a aplicação conjunta das normas relativas ao tipo e daquelas pertinentes à função eleita.
Não fosse assim, a contratação indireta serviria de eficiente instrumento de fraude à lei, a exemplo da retrovenda com escopo de garantia que desconsiderasse a proibição relativa ao pacto comissório (art. 1.428, CC).5 E mais: se a função jurídica almejada pelas partes fosse desprezada na tarefa de individuação do regime jurídico aplicável, a liberdade contratual restaria vulnerada.
Com efeito, se o intérprete se ativer apenas ao tipo eleito, ignorando os demais elementos que integram aquela relação jurídica, não serão plenamente eficazes as legítimas escolhas das partes. A vontade manifestada será apreendida pela metade, exasperando-se a opção efetuada quanto ao tipo contratual em detrimento da função jurídica pretendida pelas partes, igualmente relevante.
Pense-se na seguinte situação: mesmo antes da regulamentação legal do negócio de alienação fiduciária em garantia, a autonomia privada poderia se utilizar – como de fato se utilizava – da compra e venda com escopo de garantia. E assim o fazia porque desejava efetivamente transmitir a propriedade do bem objeto da garantia ao credor (efeito típico da compra e venda), o qual restaria protegido dos efeitos de eventual falência do devedor (ou de terceiro garantidor), ao contrário do que aconteceria com a constituição de hipoteca ou penhor, garantias que incidem sobre bens alheios.
Por meio desse efeito típico da compra e venda, realiza-se a função de garantia. A transmissão da propriedade, diante disso, vem acompanhada dos efeitos das garantias reais que se atêm não ao tipo eleito pelas partes (penhor ou hipoteca, por exemplo), mas sim à função por elas desempenhada.
Nessa direção, além da observância da vedação do pacto comissório, deve-se assegurar ao devedor a recuperação do bem mediante o pagamento integral da dívida, mesmo em caso de recusa do credor em restituir o bem. A devolução do bem, embora escape ao tipo da compra e venda, vincula-se ao objetivo de garantia almejado pelas partes.
Prestigiar os efeitos próprios da função pretendida pelas partes ainda que diversos, em alguma medida, dos efeitos do tipo eleito não significa vulnerar a autonomia privada. Muito ao revés, denota prestígio às legítimas escolhas das partes, que voluntariamente pretendem se submeter à disciplina complexa, que coteja os efeitos do tipo com os da função a ser por ele desempenhada.
A resposta
Pense-se no exemplo de uma pessoa que objetiva adquirir uma fazenda. Ela visita a fazenda, gosta da fazenda, e faz uma proposta para adquiri-la, a qual foi aceita pela contraparte. Na formalização da compra e venda, o comprador toma conhecimento de que a fazenda é de titularidade de uma sociedade da qual o vendedor detém 100% das quotas. O comprador, em vista disso, não adquire diretamente a fazenda, mas sim 100% das quotas da sociedade que é a proprietária da fazenda. A sociedade tem como único bem essa fazenda, e nada mais.
Dúvidas não há de que a função jurídica pretendida pelas partes no caso concreto é a compra e venda da fazenda em si, objeto específico e determinado. Todavia, essa função é alcançada indiretamente mediante a alienação da integralidade das quotas sociais.
Diante disso, indaga-se: vícios ocultos relativos à fazenda alienada podem repercutir no contrato de compra e venda de 100% das quotas da sociedade que é a proprietária da fazenda? A resposta é sim. E esse é o entendimento de expressiva parcela da doutrina.6
Se a alienação da participação societária representar forma indireta de alienação do estabelecimento ou de ativos específicos, aplica-se a proteção quanto aos vícios redibitórios em razão de defeitos a eles relativos, salvo se as partes tiverem afastado ou modificado o regime da garantia legal, o qual, como ressaltado, é disponível.
Palavras finais
A compra e venda de participação societária (share deal) não se confunde com o trespasse de estabelecimento comercial (asset deal). Na compra e venda de participação societária não há alienação da empresa em si, a qual continua a ser exercida pela sociedade cujas ações ou quotas são alienadas. Já no trespasse ocorre a transferência da empresa, com a mudança do empresário.
Todavia, a estrutura da compra e venda de participação societária pode ser utilizada para alcançar a função do trespasse, ocasião em que haverá negócio indireto. Em tal situação, o intérprete deve congregar o regime jurídico próprio da estrutura eleita com aquele da função perseguida pelas partes.
Daí decorre que o regime dos vícios redibitórios há de ser aplicado à compra e venda de participação societária sempre que esta significar transmissão indireta do estabelecimento e desde que as partes não tenham afastado ou modificado o regime dos vícios redibitórios.
O respeito ao pactuado passa pela consideração dos fins comumente perseguidos pelas partes, e nessa investigação devem ser considerados não apenas os efeitos que diretamente decorrem da estrutura eleita pelas partes, mas também aqueles que indiretamente são por elas perseguidos.
A investigação da real operação jurídica realizada, com a identificação de todos os fins juridicamente pretendidos pelas partes, diretos e indiretos, implica respeito ao pactuado e à alocação de riscos avençada, fundamental para que se garanta o equilíbrio do negócio e a preservação de normas cogentes.
Milena Donato Oliva
Professora do Departamento de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Doutora e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Sócia do Escritório Gustavo Tepedino Advogados – GTA.
Como citar: OLIVA, Milena Donato. Compra e venda de participação societária e vícios redibitórios. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 130, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire130>. Acesso em DD.MM.
Acerca dos vícios redibitórios, cf. San Tiago Dantas, Problemas de Direito Positivo: Estudos e Pareceres, Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 179-198.
Tullio Ascarelli, Problema das Sociedades Anônimas e direito comparado, São Paulo: Saraiva, 1969, p. 94.
Emilio Betti, Consapevole divergenza della determinazione causale nel negozio giuridico. Simulazione e riproduzione dicis causa o fiduciae causa, in Bullettino dell’Istituto di Diritto Romano ‘Vittorio Scialoja’, nuova serie vol. I, Roma: Istituto di Diritto Romano, 1934, p. 302.
Francesco Ferrara, A simulação dos negócios jurídicos, cit., p. 76, p. 90 e p. 239-240.
“O negócio indireto fica, portanto, subordinado, quer quanto à validade, quer quanto à disciplina, a duas ordens de normas jurídicas: as que dizem respeito ao tipo de negócio adotado, e as que concernem à função deste no caso concreto. No que diz respeito ao primeiro problema é preciso ter em conta as normas que concernem a um determinado negócio, independentemente dos fins últimos visados pelas partes; no que se refere ao segundo problema, cumpre, ao contrário, levar em conta as normas que respeitam a um determinado efeito, qualquer seja o negócio adotado pelas partes e isso, justamente, para evitar seja um negócio usado fraudulentamente” (Tullio Ascarelli, Problema das Sociedades Anônimas e direito comparado, São Paulo: Saraiva, 1969, p. 117).
Por todos, cf. Marcelo Vieira von Adamek e André Nunes Conti, A cláusula de declarações e garantias em aquisições de empresas no direito brasileiro, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024, p. 45-52.