#74. O confronto entre a disciplina dos vícios redibitórios e a cláusula de declarações e garantias em contratos de compra e venda de participação societária
Na AGIRE #18, a coluna “Em Debate”, escrita pela Professora Caitlin Mulholland, enfrentou o conceito e as funções das cláusulas de declarações e garantias. Agora a AGIRE #74 pretende avançar com outro foco: como se dá a convivência entre a cláusula de declarações e garantias e o regime legal dos vícios redibitórios?
A cláusula de declarações e garantias e os remédios legais
Típicas em contratos de compra e venda de participação societária, as cláusulas de declarações e garantias assumem particular relevância quando estão atreladas à veracidade e/ou à precisão das demonstrações financeiras e contábeis da sociedade-alvo. São inúmeras as disputas societárias que têm origem no descobrimento de um passivo oculto que afeta, negativamente, o valor de mercado da sociedade-alvo e, consequentemente, o preço acordado pelas partes.
Na ausência de disposições como essa, discute-se se a disciplina dos vícios redibitórios poderia ou não ser aplicada. Em rigor, a existência de um passivo oculto não afeta o uso das quotas ou das ações que foram adquiridas, mas apenas o seu valor. No entanto, segundo Teresa Negreiros, respaldada em outras fontes, prevalece “o entendimento de que se enquadram no conceito de vícios redibitórios os passivos descobertos após a alienação do controle societário”.1 Independentemente da posição que se adote, isso não retira, à evidência, a importância da cláusula de declarações e garantias. Afinal, tornar essa garantia expressa, regulando contratualmente as consequências do seu descumprimento, aumenta muito a proteção do adquirente. A dúvida que surge é como essa disposição convive com os remédios legais.
A aparente autossuficiência da cláusula
Importada quase sempre acriticamente da common law, na cláusula de declarações e garantias a falsidade das declarações é normalmente um pressuposto para o surgimento de uma obrigação ulterior, que, no mais das vezes, é o pagamento de uma soma em dinheiro, mas nada impede que as partes convencionem outra consequência, como a redução do preço da operação, o desfazimento do negócio ou mesmo a sanação in natura do risco.2 Apesar de sua qualificação ser controvertida, por meio dessa cláusula as partes buscam maior previsibilidade na solução das disputas, já que as consequências da não veracidade do quanto declarado costumam vir previstas na sua própria redação.
A aparente autossuficiência da cláusula não impede, porém, a aplicação dos remédios legais, desde que presentes os seus requisitos. Se as demonstrações financeiras foram “maquiadas” propositalmente para inflar o valor da sociedade-alvo, configurando-se o dolo na fase formativa do negócio, o adquirente poderá anulá-lo. O regime contratual da cláusula não se sobrepõe ao legal e, por isso mesmo, não afasta a possibilidade de o adquirente valer-se da disciplina do dolo para anular o negócio jurídico. Em se tratando de dolo acidental (artigo 146 do Código Civil3), o adquirente não poderá anular o negócio, mas poderá pleitear perdas e danos (a natureza da responsabilidade nesse caso será extracontratual – já que o dolo atua na formação da vontade –, e não contratual, como seria se o adquirente estivesse apenas reclamando o descumprimento da própria cláusula de declarações e garantias).
Agora já deixando de lado o dolo, volta-se para a pergunta original: como se dá a convivência dessa cláusula com os vícios redibitórios, cujo regime legal, previsto nos artigos 441 a 446 do Código Civil, é essencialmente dispositivo?
O “não-lugar” da teoria dos vícios redibitórios
O enquadramento dogmático dos vícios redibitórios é tão problemático que Serpa Lopes chegou a afirmar que a teoria se situa num “não-lugar”, isto é, numa espécie de limbo entre a teoria do erro e a teoria do inadimplemento.4 Há quem entenda, por isso mesmo, que os vícios redibitórios têm natureza híbrida, que ora se assemelha ao erro (erro quanto às qualidades do bem), ora se assemelha ao inadimplemento, a depender do tipo e do próprio conteúdo do contrato.5
Longe dos olhos do erro...
Apesar disso, as diferenças em relação ao erro são bem mais evidentes. Enquanto o erro é vício do consentimento que repercute no plano da validade (vide artigos 138 a 144 do Código Civil), os vícios redibitórios recaem sobre o bem em si, situando-se no campo do mau cumprimento, sem afetar a validade do contrato, que passa a ostentar uma “anomalia funcional”.6 Além disso, o erro que invalida o negócio jurídico há de ser substancial e precisa poder ser percebido pelo destinatário da declaração, ao passo que os vícios redibitórios dispensam o requisito da essencialidade (basta que sejam suficientemente graves para causar uma perturbação no equilíbrio das prestações) e operam efeitos a despeito de o alienante desconhecer a existência do defeito. Como lembra ainda Teresa Negreiros, “(...) enquanto o regime do erro é tendencialmente imperativo, o dos vícios é de caráter essencialmente dispositivo, situando-se no campo da responsabilidade negocial”.7 E por aí vão muitas outras diferenças.8
... mas perto do coração do inadimplemento
Já as semelhanças com o inadimplemento não parecem meras coincidências. Apesar de a corrente tradicional sustentar que os vícios redibitórios encontram na teoria da garantia o seu fundamento próprio e autônomo,9 não são poucos os autores que entendem que a disciplina dos vícios redibitórios integra o “modelo do inadimplemento, não havendo razão, nem sistemática, nem axiológica, para tê-los como espécie divorciada do regime geral”.10 De fato, considerando o conceito amplo de mora adotado pelo Direito brasileiro (artigo 394 do Código Civil11), que não a reduz a atrasos, a obrigação do alienante não é apenas a de entregar a coisa, mas antes a de a entregar conforme o contratado.
A aproximação dos dois regimes é fácil de notar, mas o fato é que o legislador fez questão de distingui-los em, pelo menos, três aspectos relevantes: (i) em relação à abrangência da responsabilidade do devedor, que é mais ampla na disciplina do inadimplemento;12 (ii) no que diz respeito à culpa: no regime dos vícios as consequências não indenizatórias são independentes da culpa, o que não é o caso do inadimplemento; e, finalmente, (iii) quanto aos prazos conferidos ao credor lesado, muito mais reduzidos em se tratando de vícios redibitórios.
Cotejo necessário
Para além de suas funções informativa, probatória e assecuratória, a cláusula de declarações e garantias pode exercer também, dependendo da sua redação, uma função conformativa: conforma a obrigação do declarante, especificando as qualidades do objeto da alienação e, assim, as qualidades prometidas na cláusula passam a integrar a obrigação do alienante.13 Diante, então, do descobrimento de um passivo oculto não revelado nas demonstrações financeiras, cuja veracidade e precisão foram atestadas pelo alienante, pode haver violação da cláusula de declarações e garantias (a ensejar a abertura do regime consequencial do inadimplemento) e, ao mesmo tempo, configuração dos requisitos da proteção legal contra vícios redibitórios (pelo menos para quem entende que esse regime é mesmo aplicável em tais situações14).
Com a estipulação expressa de cláusula de declarações e garantias que verse sobre as características do bem, pretendem as partes delimitar “o próprio perímetro da prestação objeto do contrato que está em causa”,15 então o credor, ao descobrir o passivo oculto, pode valer-se da garantia que reforça o cumprimento da obrigação, sem necessidade de recorrer à disciplina dos vícios redibitórios. A vocação exaustiva da cláusula não impede, porém, o credor de buscar abrigo no regime legal que continua sendo importante, “quer no plano do exame acerca da validade destas cláusulas, quer no plano da sua interpretação supletiva quando forem lacunosas e o intérprete for levado a recorrer à lei para suprir tais lacunas”.16
Em caso de divergência entre a consequência contratualmente estabelecida pelas partes e a prevista pelo legislador, como se dá, por exemplo, quando as partes fixam o “survival period” por prazo superior aos reduzidos prazos do regime dos vícios redibitórios, caberá ao intérprete verificar como tais cláusulas interagem com as normas legais. Nesse exemplo específico dos prazos, a própria redação do artigo 446 do Código Civil17 indica que “[n]ão correrão os prazos do artigo antecedente na constância de cláusula de garantia”. Em outros casos, porém, é possível que o regime legal prevaleça (até porque não se pode presumir o afastamento do regime legal pela mera estipulação da cláusula de declarações e garantias), mas, em se tratando de vícios redibitórios, o intérprete deve sempre lembrar que o seu regime é essencialmente dispositivo.
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. O confronto entre a disciplina dos vícios redibitórios e a cláusula de declarações e garantias em contratos de compra e venda de participação societária. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 74, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/publish/post/135041102>. Acesso em DD.MM.AA.
Teresa Negreiros, “Dos vícios redibitórios e da sua articulação com as cláusulas de declarações & garantias em contratos de compra e venda de empresas”. In: Giovana Benetti, André Rodrigues Corrêa, Márcia Santana Fernandes, Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke, Mariana Pargendler, Laura Beck Varela (orgs.), Direito, cultura, método: leituras da obra de Judith Martins-Costa, Rio de Janeiro: GZ, 2019, pp. 842-843.
Cf. Natalie Sequerra, “A cláusula de indenização como mecanismo de alocação de risco”. In: Carolina S. Sussekind, Fernanda Freitas e Fabíola Cavalcanti (orgs.), Fusões e aquisições em foco, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, pp. 260-261.
Código Civil: “Art. 146. O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo”.
Miguel Maria de Serpa Lopes, Curso de direito civil, vol. III, 6. ed., São Paulo: Freitas Bastos, p. 176.
Sobre a natureza dos vícios redibitórios, cf. João Calvão da Silva, Compra e venda de coisas defeituosas (conformidade e segurança), Coimbra: Almedina, 2002, p. 49.
A expressão é de Teresa Negreiros, “Dos vícios redibitórios e da sua articulação com as cláusulas de declarações & garantias em contratos de compra e venda de empresas”, cit., p. 825.
Teresa Negreiros, “Dos vícios redibitórios e da sua articulação com as cláusulas de declarações & garantias em contratos de compra e venda de empresas”, cit., pp. 823-824.
Como já se observou: “O equívoco inerente ao vício redibitório não se confunde com o erro substancial, vício de consentimento previsto na Parte Geral do Código Civil, tido como defeito dos atos negociais. O legislador tratou o vício redibitório de forma especial, projetando inclusive efeitos diferentes daqueles previstos para o erro substancial. O vício redibitório, da forma como sistematizado pelo CC/16, cujas regras foram mantidas pelo CC/02, atinge a própria coisa, objetivamente considerada, e não a psique do agente. O erro substancial, por sua vez, alcança a vontade do contratante, operando subjetivamente em sua esfera mental” (STJ, 3ª T., REsp n. 991.317/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 03.12.2009, DJe 18.12.2009).
Por todos: Paulo Luiz Neto Lôbo, Responsabilidade por vícios e a construção jurisprudencial, Revista do Direito do Consumidor, pp. 45-51, São Paulo: RT, 1995, p. 47.
A exemplo de Judith Martins-Costa, autora da frase entre aspas (Comentários ao novo Código Civil, vol. V, tomo II, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 72).
Código Civil: “Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer”.
Na disciplina dos vícios redibitórios, a parte lesada precisa comprovar que o alienante tinha conhecimento do defeito para atrair a sua responsabilidade. De acordo com o artigo 443 do Código Civil: “Se o alienante conhecia o vício ou defeito da coisa, restituirá o que recebeu com perdas e danos; se o não conhecia, tão-somente restituirá o valor recebido, mais as despesas do contrato”.
É que explica Giacomo Grezzana, na obra: A cláusula de declarações e garantias em alienação de participação societária, São Paulo: Quartier Latin, 2019.
Isto é, ultrapassando o contra-argumento de que o passivo oculto não afeta o uso das quotas ou das ações que foram adquiridas, mas apenas o seu valor.
Teresa Negreiros, “Dos vícios redibitórios e da sua articulação com as cláusulas de declarações & garantias em contratos de compra e venda de empresas”, cit., p. 845.
Uma vez mais, recorre-se às lições de Teresa Negreiros, “Dos vícios redibitórios e da sua articulação com as cláusulas de declarações & garantias em contratos de compra e venda de empresas”, cit., p. 846.
Código Civil: “Art. 446. Não correrão os prazos do artigo antecedente na constância de cláusula de garantia; mas o adquirente deve denunciar o defeito ao alienante nos trinta dias seguintes ao seu descobrimento, sob pena de decadência”.