#133. Direito intertemporal e a Lei 14.905/24
Por Gustavo Kloh
Quando a Lei n.º 14.905/24 foi promulgada, a atenção de todos os operadores do direito imediatamente se voltou para o entendimento da nova taxa legal de juros e seus reflexos sobre contratos e processos judiciais (vide AGIRE#129). Todavia, a discussão sobre sua aplicação no tempo tem sido pouco tratada, apesar de sua enorme relevância. A ideia deste texto é tentar preencher essa lacuna, mesmo que de modo inicial.
Em primeiro lugar, é relevante discutir a vacatio legis por ela estabelecida. Com exceção do artigo 2º, parágrafo 2º, a lei entrou em vigor sessenta dias após a data da publicação, no dia 30 de agosto. Desse modo, a partir dessa data, a lei tem eficácia imediata, exatamente conforme os termos do art. 6º da LINDB.
Considerando a data mencionada, convém também fazer uma necessária separação entre a aplicação das normas de natureza processual da lei, daquelas aplicáveis a obrigações e contratos, e, por fim, das atinentes a questões condominiais. Quanto às normas processuais, o artigo 14 do Código de Processo Civil determina que a norma processual não retroagirá e será aplicada aos processos em curso, mesmo as normas de conteúdo material que tenham reflexos processuais.
Esse raciocínio é corroborado pelo que foi julgado no Superior Tribunal de Justiça em 2012. No julgamento dos temas 4911 e 492,2 o Tribunal determinou que os valores resultantes de condenações proferidas contra a Fazenda Pública, após a entrada em vigor da Lei n.º 11.960/09, deveriam observar os critérios de atualização nela disciplinados enquanto vigorarem. Essa determinação de aplicação imediata deve nortear o que os tribunais farão ao aplicar normas sobre correção monetária e juros a processos em curso, mesmo que exista determinação expressa de aplicação de outro índice no texto do julgado.
Quanto ao direito material, todavia, o quadro parece ser bem mais complexo. Neste caso, é necessário levar em consideração todo um histórico de debates que existiu no Brasil, quando da entrada em vigor da lei que instituiu a TR, e posteriormente do Código Civil. Quando a Lei n.º 8.177/91 entrou em vigor, o diploma propunha que a lei fosse aplicada de imediato aos contratos em curso, inclusive em contratos com correção monetária atrelada à avaliação salarial dos signatários, visto que a lei não efetuava essa distinção.
Esse assunto, de certo modo, está encapsulado no passado, e muitos nunca ouviram falar de plano de equivalência salarial, BNH, FCVS. No entanto, a aplicação de uma correção monetária de mercado a contratos que só deveriam ser corrigidos caso a categoria profissional envolvida fosse contemplada com dissídio representava, ao menos, uma grande surpresa e alteração.
No caso da aplicação imediata da lei da TR, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, no histórico julgamento da ADIN 493,3 relatado pelo Ministro José Carlos Moreira Alves, que a surpresa e alteração decorrentes de um novo critério legal seriam incompatíveis com a ideia de retroatividade das leis. O Tribunal constatou que impor ao contratante algo que ele jamais teria desejado violaria uma vontade manifestada no passado e representaria, ainda que de forma mínima, retroatividade. Nesse caso, a nova lei deixou de ser aplicada, prevalecendo para esses contratos o princípio do "tempus regitactum".
Assim, é viável, em princípio, manter a lógica da ADIN 493. Deste modo, nos dispositivos da lei que limitam a taxa de juros ou determinam um critério a ser usado na ausência de acordo contratual, como nos novos artigos 406 e 591 do Código Civil, deve-se preservar o critério estabelecido no momento da celebração do contrato. Vale lembrar que, na análise do Tema 123,4 julgado em 2020, referente à aplicabilidade da Lei n.º 9.656/98, que regula os planos de saúde a contratos celebrados antes de sua vigência, o STF reiterou a abordagem da ADIN 493, autorizando a ultratividade da lei revogada.
Quanto à questão condominial, dois aspectos devem ser considerados. Primeiro, que os juros aplicáveis serão os da Lei n.º 14.905/24 (SELIC subtraído do IPCA), e não mais de um por cento ao mês, sem esquecer a possibilidade de fixação convencional de juros superiores ao limite da taxa legal em dívidas condominiais, conforme precedentes do Superior Tribunal de Justiça, como no RESP 1.002.525.5
Ademais, qualquer norma relativa a condomínios também se aplica imediatamente, dada a natureza das relações condominiais. Este é um importante debate que ocorreu há tempos no Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu que a relação condominial não é contratual, permitindo, assim, a aplicação do precedente do RESP 722.904,6 com quase 20 anos (2005), que reconheceu que, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, as normas condominiais se aplicariam imediatamente, independente do que estivesse previsto na convenção de condomínio.
Essas são impressões imediatas sobre a aplicação da Lei de Juros a contratos, processos e relações condominiais. A perspectiva aqui apresentada baseia-se em precedentes e pressupõe uma certa previsibilidade que, esperamos, seja mantida pelos aplicadores do Direito.
Gustavo Kloh
Doutor em Direito Civil. Professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas - Rio de Janeiro. Membro do IAB e Advogado.
Como citar: KLOH, Gustavo. Direito intertemporal e a Lei 14.905/24. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 133, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire133>. Acesso em DD.MM.AA.
Tese firmada no tema n.º 491: “Os valores resultantes de condenações proferidas contra a Fazenda Pública após a entrada em vigor da Lei 11.960/09 devem observar os critérios de atualização (correção monetária e juros) nela disciplinados, enquanto vigorarem. Por outro lado, no período anterior, tais acessórios deverão seguir os parâmetros definidos pela legislação então vigente” (STJ, Tema n.º 491, publ. 19.06.2020).
Tese firmada no tema n.º 492: “Os valores resultantes de condenações proferidas contra a Fazenda Pública após a entrada em vigor da Lei 11.960/09 devem observar os critérios de atualização (correção monetária e juros) nela disciplinados, enquanto vigorarem. Por outro lado, no período anterior, tais acessórios deverão seguir os parâmetros definidos pela legislação então vigente” (STJ, Tema n.º 492, publ. 19.06.2020).
“Ação direta de inconstitucionalidade. Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que e um ato ou fato ocorrido no passado - O disposto no artigo 5, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva. Precedente do STF - Ocorrência, no caso, de violação de direito adquirido. A taxa referencial (TR) não e índice de correção monetária, pois, refletindo as variações do custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda. Por isso, não há necessidade de se examinar a questão de saber se as normas que alteram índice de correção monetária se aplicam imediatamente, alcançando, pois, as prestações futuras de contratos celebrados no passado, sem violarem o disposto no artigo 5, XXXVI, da Carta Magna - Também ofendem o ato jurídico perfeito os dispositivos impugnados que alteram o critério de reajuste das prestações nos contratos já celebrados pelo sistema do Plano de Equivalência Salarial por Categoria Profissional (PES /CP). Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 18, "caput" e parágrafos 1 e 4; 20; 21 e parágrafo único; 23 e parágrafos; e 24 e parágrafos, todos da Lei n. 8.177, de 1 de maio de 1991” (STF, Tribunal Pleno, ADI 493/DF, Rel. Min. Moreira Alves, j. 25.06.1992, publ. 04.09.1992).
Tese firmada: “As disposições da Lei 9.656/1998, à luz do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, somente incidem sobre os contratos celebrados a partir de sua vigência, bem como nos contratos que, firmados anteriormente, foram adaptados ao seu regime, sendo as respectivas disposições inaplicáveis aos beneficiários que, exercendo sua autonomia de vontade, optaram por manter os planos antigos inalterados” (STF, Tema n.º 123, publ. 18.11.2020).
“CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. CONFLITO DE LEIS NO TEMPO. TAXAS CONDOMINIAIS. JUROS MORATÓRIOS ACIMA DE 1% AO MÊS. PREVISÃO NA CONVENÇÃO DO CONDOMÍNIO. POSSIBILIDADE. 1. Em face do conflito de leis no tempo e, conforme prevê o art. 2º, § 1º, da LICC, os encargos de inadimplência referentes às despesas condominiais devem ser reguladas pela Lei 4.591/64 até 10 de janeiro de 2003 e, a partir dessa data, pelo Código Civil/02. 2. Após o advento do Código Civil de 2002, é possível fixar na convenção do condomínio juros moratórios acima de 1% (um por cento) ao mês em caso de inadimplemento das taxas condominiais. 3. Recurso especial provido” (STJ, 3ª T., REsp 1002525/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 16.09.2010, DJe 22.09.2010).
“Despesas de condomínio. Multa. Aplicação do Código Civil de 2002,art. 1.336, § 1º. Precedentes da Corte. 1. A natureza estatutária da convenção de condomínio autoriza aimediata aplicação do regime jurídico previsto no novo Código Civil,regendo-se a multa pelo disposto no respectivo art. 1.336, § 1º. 2. Recurso especial conhecido e desprovido” (STJ, 3ª T., REsp: 722904 RS 2005/0020068-3, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 14.06.2005, DJ 01.07.2005, p. 532).