#145. Há mora em obrigações negativas?
Comecemos com três exemplos singelos. No primeiro cenário, ex-sócio obrigou-se a não prestar serviços a clientes de sociedade da qual fazia parte. No segundo cenário, duas sociedades obrigaram-se reciprocamente a não divulgar dados sigilosos trocados entre elas no curso de negociações para conclusão de uma operação societária. No terceiro cenário, dois vizinhos acordaram que não deveria ser construído muro divisório entre as propriedades.
Na sequência, pensemos em situações nas quais falta o cumprimento das obrigações ajustadas: a obrigação de não concorrência, que deveria ser observada durante cinco anos, foi descumprida logo no primeiro mês após a saída da sociedade; a obrigação de confidencialidade foi rompida com a divulgação em redes sociais de todas as informações e documentos trocados pelas partes; a obrigação de não edificar foi descumprida com a construção do muro que não deveria ter sido construído. Quid juris?
Lado A: as espécies de inadimplemento
Há duas espécies de inadimplemento contratual do dever de prestar. De um lado, a mora configura-se quando a prestação não tenha sido cumprida por ato imputável ao devedor, mas, nada obstante, ainda possa ser cumprida de forma útil para o credor. De outro, o inadimplemento absoluto restará configurado “quando a obrigação não foi cumprida, nem poderá sê-lo (...)”.1
A diferença prática entre as espécies de inadimplemento diz respeito aos remédios à disposição do credor lesado e, no que toca ao tema da AGIRE de hoje, à viabilidade e à adequação do cumprimento específico da obrigação descumprida.
Lado B: mora e cumprimento específico
No caso da mora, a prestação ainda pode ser cumprida de forma útil. Diz-se, pois, que a mora pode ser purgada ou emendada (art. 401 do CC2). No inadimplemento absoluto, o cumprimento específico, que já esteve por aqui nas AGIRES #8 e #17, não tem mais lugar.
Naquela oportunidade, afirmou-se que “o cumprimento específico é o primeiro e preferencial meio de reação que o lesado tem à sua disposição em caso de inadimplemento (...)”, ainda que isso não esteja expresso na literalidade do Código Civil. Mas também foi dito que, ainda que o cumprimento específico seja preferencial, isso não quer dizer que seja sempre um remédio disponível ou aplicável in concreto.
Situações há, e são muitas, em que o cumprimento específico não será possível e não haverá disponibilidade deste remédio. Outras há em que, ainda que possível, ele não mais satisfará o interesse do credor. As partes também podem, e o fazem de forma frequente, ajustar contratualmente os requisitos que pautarão a análise da disponibilidade e da aplicabilidade deste remédio. É a isso, dentre outras funções, que se presta a cláusula resolutiva expressa, tema tão bem tratado por Aline Terra em trabalhos acadêmicos3 e recorrentemente objeto de colunas da AGIRE (#1, #77 e #86). Nesses casos, o credor é liberado de exigir o cumprimento específico.
Não surpreende que os critérios aplicáveis para afastamento do cumprimento específico sejam os mesmos utilizados para a qualificação do inadimplemento absoluto.4 A simetria é plenamente compreensível: para todo mal, a cura.5
Mas é preciso sublinhar: essa construção não importa concluir que o inadimplemento se origine sempre na mora que, depois, venha a ser transformada em inadimplemento absoluto. É plenamente possível que, desde o início, a falta de cumprimento configure inadimplemento absoluto. Nesses casos, a inviabilidade do cumprimento específico opera-se desde logo, não havendo que se falar em conversão.
É o que basta para retomar o tema subjacente à coluna: a prática do ato a cuja abstenção se obrigara o devedor faz com que haja inadimplemento absoluto?
Faixa principal: inadimplemento absoluto e mora em obrigações negativas
Nas palavras de Barros Monteiro, a obrigação de não fazer “é aquela pela qual o devedor se compromete a não praticar certo ato, que poderia livremente praticar, se não houvesse se obrigado”.6 As obrigações negativas, como são também chamadas, receberam pouca atenção do legislador brasileiro.
O primeiro par de artigos que se deve analisar para sua compreensão é composto pelos arts. 250 e 251 do Código Civil, que dispõem sobre a impossibilidade de cumprimento e suas consequências, bem assim sobre o direito de desfazimento do ato:
Art. 250. Extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossível abster-se do ato, que se obrigou a não praticar.
Art. 251. Praticado pelo devedor o ato, a cuja abstenção se obrigara, o credor pode exigir dele que o desfaça, sob pena de se desfazer à sua custa, ressarcindo o culpado perdas e danos.
Parágrafo único. Em caso de urgência, poderá o credor desfazer ou mandar desfazer, independentemente de autorização judicial, sem prejuízo do ressarcimento devido.
O texto do art. 250 do CC é facilmente compreendido. Na medida em que a abstenção tenha se tornado impossível sem culpa do devedor, há impedimento ao cumprimento específico da obrigação. A ausência de culpa do devedor faz com que não surja dever de outra natureza no lugar do cumprimento (como aquele de indenizar). A extinção da obrigação é, pois, consequência lógica e ope legis.
Já o alcance do conteúdo do art. 251 do CC exige maior atenção, em especial à luz do que dispõe o art. 390 do CC:
Art. 390. Nas obrigações negativas o devedor é havido por inadimplente desde o dia em que executou o ato de que se devia abster.
O texto foi objeto de pontual alteração em relação ao seu equivalente funcional no Código Civil de 1916, cujo art. 961 dispunha que o devedor era havido em mora desde o dia em que executou o ato:
Art. 961. Nas obrigações negativas, o devedor fica constituído em mora, desde o dia em que executar o ato de que se devia abster
A referência à mora no texto legal não deixou de sofrer crítica no direito anterior, como aquela que lhe direcionou Lacerda de Almeida: “parece um contrassenso falar em mora em obrigação de não fazer, porque ou o devedor se abstém do acto, e está com isso cumprindo a obrigação, ou então infringe o seu dever jurídico, pratica o acto, e então sujeita-se às comminações do art. 882 do Código (...)”.7
E, de fato, a doutrina diverge a propósito do cabimento do cumprimento específico (e, portanto, de mora) em obrigações negativas.
Há doutrina que defende que o inadimplemento da obrigação de não fazer configurará automaticamente inadimplemento absoluto. Com referência especialmente à doutrina italiana, à qual parece aderir sem crítica, Agostinho Alvim referia que seria absurdo falar em retardo de obrigações negativas.8 No mesmo sentido, Orosimbo Nonato ensinava de forma categórica que “na obrigação negativa, a prática do ato que deveria ser omitido produz impossibilidade de prestação direta”.9
De outro lado, há doutrina favorável à possibilidade da mora em obrigações negativas, na qual se destaca a firme posição de Pontes de Miranda, que afirmava não ser verdade não haver mora em obrigações negativas. Isso, porque o efeito da mora pode ser elidido com a sua purgação pelo devedor, que poderia continuar a se abster.10
Analisando em profundidade essas posições, razão deve ser dada à segunda delas. Afinal, permanecendo o interesse do credor no cumprimento da abstenção, não há razão para que se considere inadequado o manejo do remédio de cumprimento específico. A afirmação encontra especial aplicação em obrigações contínuas (ou seja, não instantâneas) como aquela do primeiro cenário com o qual se abriu o texto: permanecendo o interesse do credor no cumprimento da obrigação de não-concorrência, o credor poderia exigir sua observância do devedor. A distinção, como se vê, é que o cumprimento específico voltar-se-á ao futuro, mas não ao passado (ou seja, à concorrência que já foi exercida). Quanto aos efeitos passados, eles podem (em tese) ser desconstituídos.
O exemplo leva a uma nova divisão na doutrina, pois há quem considere que a pretensão de desfazimento à qual o credor tem direito com fundamento no art. 251 do CC seria espécie de cumprimento específico.
Tito Fulgêncio, por exemplo, após afirmar que “praticado o acto, a cuja obstenção se obrigara o devedor, e constituído assim em mora ope legis, trata-se de saber quaes as consequencias resultantes da inexecução das obrigações” ensinava que o desfazimento restabeleceria o status quo “e conseguida a res debita”, ou seja, seria espécie de cumprimento específico.11 Essa também é a visão de Judith Martins-Costa, que dá razão a Pontes de Miranda quanto à possibilidade de mora nas obrigações negativas, e arremata: “(...) tanto que há possibilidade de ser purgada a mora, pelo desfazimento do ato, por exemplo, quando o devedor, que se obrigara a não modificar a fachada do prédio, e a modificara, desfaz o que fizera”.12
De outro lado, Agostinho Alvim defendia posição diametralmente oposta, quando afirmava que “o desfazimento da obra já não tem o caráter de execução forçada e sim de reparação”.13
Seja como for – e embora a autora incline-se a considerar que o desfazimento não se confunde com cumprimento específico – fato é que a possibilidade de desfazimento não é critério adequado para distinguir entre a mora e o inadimplemento absoluto nas obrigações negativas.
Em dissertação de mestrado defendida na Universidade de São Paulo em 2024, Beatriz Uchôas Chagas enfrentou o tema no seu âmago e concluiu que o critério definidor será o interesse do credor: “o fenômeno da mora não depende da possibilidade de desfazer os efeitos materiais do descumprimento, mas da permanência do interesse do credor no cumprimento específico da obrigação pelo credor – o que, na obrigação negativa, significa a retomada da abstenção. O interesse do credor é o parâmetro que não deve ser perdido de vista na distinção entre mora e inadimplemento definitivo”.14
Retomando os cenários com os quais se abriu o texto, note-se que o desfazimento in natura do ato somente é possível em relação ao terceiro cenário, em que o muro pode ser destruído. A concorrência já exercida e o sigilo já rompido podem ensejar reparação de danos, mas não o desfazimento na forma específica. No caso da concorrência, simplemente porque ela já foi exercida; no caso do sigilo já rompido, porque o recolhimento de informações potencialmente não será factível diante da velocidade de trânsito de informações divulgadas em redes sociais. No que toca à concorrência, entretanto, é plenamente possível o cumprimento específico da obrigação pelo tempo remanescente de vigência do pacto de não concorrer, se isso ainda for de interesse do credor. Isso também vale para o pacto de não edificar, que poderá continuar a ser observado após a destruição do muro. A obrigação de sigilo, em princípio, é compatível com o cumprimento específico para o futuro, mas potencialmente terá perdido todo o sentido que tinha ao credor, em razão a inviabilidade prática do desfazimento da palavra já solta ao vento. E, claro, especificidades de cada caso podem conduzir a conclusões diversas.
Mas, diga-se mais: como o cumprimento específico para o futuro não será suficiente para apagar o inadimplemento passado, há um dado adicional na equação, notadamente, a análise sobre se a obrigaçaõ ajustada é compatível com o (in)cumprimento parcial, que também se centra no interesse do credor.15 Haverá casos em que o cumprimento da obrigação voltado ao futuro, sem que seja possível descontituir o passado, atingirá o interesse do credor de tal forma que ele seja liberado de exigir o cumprimento específico.
Faixa adicional: cumprimento específico e tutela inibitória
Leitora e leitor atentos terão percebido que o cumprimento específico do qual se tratou é aquele que é buscado após o inadimplemento. Coisa diversa é saber se as obrigações negativas podem ensejar tutela de cumprimento específico antes do inadimplemento quando, por exemplo, houver indícios de que o inadimplemento poderá ocorrer. A resposta é positiva e remete às tutelas processuais, especialmente àquela inibitória. Mas isso já é tema para outra coluna...
Renata Steiner, FCIArb.
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente e parecerista.
Conselheira do Conselho Administrativo da ARBITAC (Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial do Paraná).
Como citar: STEINER, Renata. # 145. Há mora em obrigações negativas? In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 145, 2025. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire145>. Acesso em DD.MM.AA.
ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 3ª ed., São Paulo: Editora Jurídica e Universitária, 1965, p.7.
“Art. 401. Purga-se a mora: I - por parte do devedor, oferecendo este a prestação mais a importância dos prejuízos decorrentes do dia da oferta; II - por parte do credor, oferecendo-se este a receber o pagamento e sujeitando-se aos efeitos da mora até a mesma data.”
TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte: Forum, 2017.
Em estudo específico sobre o tema, propus uma “inversão” na ordem em que o inadimplemento costuma ser estudado no Brasil: ao invés de partir das suas espécies, centrei o estudo nos remédios. É o que justifica às referências ao “lado A” e o “lado B” no texto, pois entendo que as análises costumam focar em um deles e, da parte dos civilistas, especialmente no lado dos tipos de inadimplemento. Como afirmei à altura: “essa inversão permitiu reduzir alguns dos ruídos usualmente encontrados quando do tratamento do tema. Mais precisamente, ela demonstrou que os remédios podem ser mais facilmente compreendidos quando lidos a partir de critérios distintivos uniformemente aplicados do que a partir das diferentes espécies (ou efeitos) de descumprimento contratual aos quais se aplicam. A afirmação se justifica na medida em que a classificação do descumprimento não é homogênea e nem um dado posto.” (STEINER, Renata. Descumprimento contratual: remédios à disposição do credor lesado. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde e GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (coord.). Inexecução das Obrigações: Pressupostos, evolução e remédios. Volume II. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2021,p. 300).
SANTOS, Lulu. A Cura. In: SANTOS, Lulu. Toda Forma de Amor. RCA Victor, 1988. Faixa 8.
BARROS MONTEIRO, Washington. Das modalidades de obrigações. Dissertação para o concurso de cátedra de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: 1959, p. 113.
LACERDA DE ALMEIDA, Francisco de Paula. Dos effeitos das obrigações: arts. 928 a 1.078 . Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1934.
ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 3ª ed., São Paulo: Editora Jurídica e Universitária, 1965, p. 55.
NONATO, Orosimbo. Curso de Obrigações (generalidades – espécies). Vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 319.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo. XXII: Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, p. 119 (§ 2.700).
FULGÊNCIO, Tito. Das modalidades das obrigações. In: LACERDA, Paulo de. Manual do Codigo Civil Brasileiro . Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1928, Livro III, Vol. X, p. 132.
MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil, vol. V, t. II. 2ª ed. Sálvio de Figueiredo Teixeira (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 249.
ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 3ª ed., São Paulo: Editora Jurídica e Universitária, 1965, p. 57.
CHAGAS, Beatriz Uchôas. Obrigação contratual de não fazer: conceito, inadimplemento e tutela. Dissertação de Mestrado. Orientador Professor Associado Cristiano de Sousa Zanetti. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2024, p. 138.
Sobre incumprimento parcial, com foco na resolução parcial do contrato, remete-se à outra excelente dissertação de mestrado defendida na Universidade de São Paulo recentemente, cuja publicação comercial está no prelo: LEITE, Bruna Duarte. Resolução parcial do contrato por inadimplemento. Rio de Janeiro: Almedina Brasil, 2025 (no prelo).