#26. Cumprimento pelo equivalente, esse desconhecido (I).
Ao final da AGIRE # 17 foi prometido que o tema de minha próxima coluna “Em foco” seria o tormentoso conceito de “equivalente” e, mais precisamente, do que se convencionou chamar de “cumprimento pelo equivalente”.
Diz-se cumprimento pelo equivalente, execução pelo equivalente ou execução por sub-rogação1 - expressões não legisladas - o remédio ou o meio de reação pelo qual o credor lesado, ao invés de receber a prestação devida in natura, recebe o seu valor substitutivo em pecúnia. Nas palavras de Pontes de Miranda, “(...) equivalente da prestação = valor igual, em dinheiro, ao da prestação”.2
A utilização deste meio de reação está intimamente ligada à (im)possibilidade ou à (in)utilidade do cumprimento específico, remédio preferencial já tratado na AGIRE # 8. Naquela oportunidade, tomou-se como pano de fundo parecer de Eduardo Espínola, que permanece útil à compreensão do tema desta coluna:
A Companhia B deveria restituir sacas de café recebidas em garantia ao adiantamento de dinheiro que realizou e, recebido o preço, recusou-se a adimplir sua obrigação. O Tribunal condenou B. a restituir a mercadoria e, para o caso de haver recusa de cumprimento, determinou o pagamento do valor pecuniário correspondente à quantidade e à qualidade do café a restituir. Na síntese de Espínola, a questão “se resolve, em regra, na obrigação de pagar perdas e interesses”.
Neste singelo caso, a restituição das sacas de café in natura corresponde ao cumprimento específico da obrigação; já o pagamento do valor pecuniário das sacas, que se coloca no lugar do cumprimento específico, corresponde ao cumprimento pelo equivalente.
Como palavra dada é palavra cumprida, dou hoje início a uma série de textos sobre o tema. E assim o faço com um questionamento que precede o estudo do cumprimento pelo equivalente como remédio contra o descumprimento contratual: afinal, o que vem a ser o “equivalente”?
Uma primeira tentativa de descortinar seu conteúdo parte da leitura do texto do Código Civil, em que são encontradas vinte e duas menções à palavra “equivalente”, ao que se somam outros dispositivos que não a utilizam textualmente.
Um primeiro grupo de regras que emprega a palavra equivalente é composto pelos artigos 234, 236, 239 e 279, localizados no Título I do Livro de Obrigações (Das Modalidades das obrigações). Os dispositivos tratam do destino da prestação em caso de impossibilidade culposa (rectius, imputável), in verbis:
Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes; se a perda resultar de culpa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos.
Art. 236. Sendo culpado o devedor, poderá o credor exigir o equivalente, ou aceitar a coisa no estado em que se acha, com direito a reclamar, em um ou em outro caso, indenização das perdas e danos.
Art. 239. Se a coisa se perder por culpa do devedor, responderá este pelo equivalente, mais perdas e danos.
Art. 279. Impossibilitando-se a prestação por culpa de um dos devedores solidários, subsiste para todos o encargo de pagar o equivalente; mas pelas perdas e danos só responde o culpado.
Os artigos fazem menção ao dever de “responder pelo equivalente”, ao direito de “exigir o equivalente” e ao encargo de “pagar o equivalente”. Ainda que a nomenclatura seja diversa, a lógica subjacente é idêntica: não sendo mais possível o cumprimento in natura da prestação por circunstância imputável ao devedor, é devido um pagamento pecuniário no lugar da prestação impossibilitada.
Em todos eles sobressai, ainda, o emprego em apartado da palavra equivalente e da expressão perdas e danos, definida no art. 402 CC. No caso dos artigos 234, 236 e 239 a distinção é evidenciada pela imposição ao devedor do dever de pagar o equivalente mais perdas e danos. No caso do art. 279, ela é ainda mais clara: havendo solidariedade passiva, todos os codevedores solidários respondem pelo equivalente, mas apenas o culpado (rectius, aquele a quem se imputa a impossibilidade) responderá por perdas e danos.
Este grupo de regras silencia sobre a forma de cálculo do equivalente: afirma-se o direito do credor a exigir o equivalente, mas nada se diz sobre quais os critérios para seu cálculo ou sobre o momento temporal em que isso deva ser feito.3
Tais critérios podem ser obtidos, por aproximação, em um segundo grupo de regras extraídas do Código Civil, localizadas no Título IX do Livro de Obrigações (Da Responsabilidade Civil), Capítulo II (Da indenização) e composto pelos art. 947 e 952 CC, in verbis:
Art. 947. Se o devedor não puder cumprir a prestação na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor, em moeda corrente.
Art. 952. Havendo usurpação ou esbulho do alheio, além da restituição da coisa, a indenização consistirá em pagar o valor das suas deteriorações e o devido a título de lucros cessantes; faltando a coisa, dever-se-á reembolsar o seu equivalente ao prejudicado.
Parágrafo único. Para se restituir o equivalente, quando não exista a própria coisa, estimar-se-á ela pelo seu preço ordinário e pelo de afeição, contanto que este não se avantaje àquele.
O art. 947 CC, que não emprega a palavra equivalente de forma textual, dispõe que, não sendo possível o cumprimento in natura, haverá uma substituição deste pelo “seu valor, em moeda corrente”. A despeito de sua localização em Título próprio à responsabilidade civil, a regra faz referência à “prestação na espécie ajustada”, não havendo dúvidas de que a regra se aplica também às prestações negociais.
Já o art. 952, que faz referência expressa ao equivalente, tem contexto de aplicação bem delimitado. O dispositivo que se presta à quantificação do dano por usurpação ou esbulho do alheio e dispõe que, não havendo mais a coisa a ser restituída, seja o credor reembolsado por seu equivalente. Seu parágrafo único determina seja a coisa estimada pelo seu preço ordinário ou pelo preço de afeição, deste que este não se avantaje àquele.
Ambos os dispositivos não trazem critérios definitivos quanto à forma de cálculo do equivalente, mas ao menos indicam problemas ou caminhos a percorrer. Afinal, deles se extrai a compreensão do equivalente como o “valor da coisa” – a indicar que ele não se confunde necessariamente com o preço contratual – e que a sua valoração pode ser calculada por diferentes critérios, destacando-se um critério ordinário (objetivo) e um critério específico (subjetivo).
Por fim, um terceiro grupo de regras emprega o termo “equivalente” no contexto de obrigações de restituição em razão da decretação de invalidade e de restituição do enriquecimento sem causa, situações bastante diversas daquelas encontradas nos dois primeiros grupos. Este grupo é compreendido pelo disposto no art. 182 (Parte Geral) e pelo art. 884 CC (Título VII do Livro de Obrigações, Dos atos unilaterais), in verbis:
Art. 182. Anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente.
Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.
O art. 182 lida com a eficácia desconstitutiva da invalidade e dispõe que, anulado o negócio jurídico, haja a restituição das partes ao estado anterior e, não sendo possível a restituição in natura, seja ela feita pelo equivalente. A regra é criticável por se referir à indenização do equivalente, pois a restituição em razão da desconstituição do negócio jurídico não tem caráter indenizatório. Por outro lado, ela é útil por reforçar que o equivalente como um substitutivo: no lugar da restituição in natura, há a restituição de um equivalente.
O art. 884, por sua vez, tratando do enriquecimento sem causa, determina a restituição da coisa determinada objeto do enriquecimento e, no caso de ela não mais subsistir (hipótese em que haverá impossibilidade de restituição in natura), que haja restituição de seu valor à época em que foi exigido. Aqui, a grande contribuição da regra é apontar um parâmetro temporal objetivo para o cálculo do equivalente, que nos seus termos há de ser feito “na época em que foi exigido”.
Este primeiro sobrevoo permite alcançar algumas conclusões preliminares ao caminho que se pretende trilhar. São elas:
(i) Equivalente é termo empregado em diferentes contextos no Livro de Obrigações do Código Civil brasileiro. Em comum, tais empregos coincidem na visão do equivalente como um substituto de determinada coisa ou prestação;
(ii) Cumprimento pelo equivalente, por sua vez, não é expressão legislada e sua construção como meio de reação do lesado depende da proposição de um modelo doutrinário. Essa nota o diferencia do cumprimento específico que, conquanto não expresso no Código Civil, é tido como remédio natural ao descumprimento4, da resolução, que encontra tratamento, ainda que lacônico, nos artigos 474 e 475 CC, e da tutela indenizatória, ex vi art. 389, 395 e 402 CC.
Atingidos tais marcos, o caminho que se segue ramifica-se em duas trilhas que, mais à frente, se reencontrarão: um olhar ao histórico dos dispositivos aqui mencionados e um olhar ao tratamento doutrinário a eles conferido.
Renata Steiner
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente.
Sobre o tema, remete-se a TERRA, Aline. Execução pelo equivalente como alternativa à resolução: repercussões sobre a responsabilidade civil. In: Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, v. 18, p. 49-73, out./dez. 2018.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado.Tomo XXVI. cit., § 3.107, p. 28.
Sobre o marco temporal para cálculo, remete-se ao recurso repetitivo REsp n. 1.301.989/RS, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Segunda Seção, julgado em 12/3/2014, DJe de 19/3/2014., em que o STJ fixou tese, no âmbito de ações para complementação de ações em contratos de participação financeira firmados com Brasil Telecom, que a conversão do valor das ações em perdas e danos deve seguir a sua cotação no dia do dia do trânsito em julgado”.
ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. cit., pp. 23-24