# 35. Proteção a investimentos: desafios para o preenchimento do art. 473, parágrafo único, CC
A denúncia é direito formativo extintivo pelo qual um dos contratantes pode, unilateralmente, colocar termo em uma relação concebida para durar por tempo indeterminado. No Direito positivo brasileiro, este direito formativo extintivo é objeto de tratamento de cunho geral no lacônico art. 473 CC, dispositivo que tem a seguinte redação:
Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte.
Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos.
O texto contém uma regra e uma exceção. A regra, constante do caput, afirma a existência do direito extintivo quando a lei expressa ou implicitamente o permita e dispõe sobre a forma de seu exercício, que se dá mediante comunicação de vontade ao denunciado. Coube à doutrina vincular a permissão implícita, ali referida, aos contratos de duração indeterminada, nos quais o direito à extinção unilateral é natural por força do postulado de que ninguém é obrigado a permanecer contratante ad eternum.1 Afinal, como sintetizou Pontes de Miranda, “nas relações jurídicas duradouras, é preciso que possa ter ponto final o que se concebeu em reticência.”2 Nada impede, embora o tema ainda suscite discussões, que as partes prevejam contratualmente o direito de resilição unilateral em contratos com prazo determinado, nos quais a existência de tal direito não é fisiológica.3 Já a exceção, constante do parágrafo único, determina que haja o “transporte da eficácia da denúncia”4 quando preenchidos os pressupostos nele constantes, notadamente, quando a extinção for promovida antes de transcorrido prazo compatível com determinados investimentos. É sobre a exceção e, mais precisamente, sobre o que aqui se denomina de proteção a investimentos, que se desenvolvem as linhas que seguem.
Sobram motivos para justificar a relevância do tema. Mas, em especial, diga-se que o conteúdo da norma demanda preenchimento, pois repleta de conceitos abertos – o texto legal faz menção à natureza do contrato, a investimentos consideráveis, à compatibilidade com a natureza e vulto dos investimentos – e que, passados já vinte anos desde a edição do Código Civil, o seu preenchimento pelos Tribunais permanece em construção, longe de ser edifício erguido. O tema já esteve sob holofotes na AGIRE # 22, em que foi noticiada decisão do STJ, de agosto de 2021, que aplicou a regra em comento (REsp 1874358/SP).
Para contribuir com a empreitada ainda em curso, traçam-se considerações preliminares sobre os limites, as funções e os desafios da aplicação do parágrafo único do art. 473 CC. Tal vem feito em formato de perguntas e respostas, ilustradas por decisões jurisprudenciais sobre o tema:
Quais contratos estão sujeitos à regra do art. 473, parágrafo único?
O parágrafo único se insere nos quadrantes do caput, e, por isso, está delimitado aos contratos de duração indeterminada. Não fosse isso, a lógica de proteção a investimentos está diretamente relacionada a contratos sem termo final.5 Afinal, tal proteção só tem sentido nos contratos sem prazo de duração, uma vez que, naqueles concebidos para durar por certo prazo, pressupõe-se que o prazo contratado seja adequado e suficiente aos investimentos que serão realizados (e vice-versa). Por evidente, isso não quer dizer que contratos formalmente celebrados por prazo determinado de vigência não possam ser materialmente qualificados como contratos sem prazo, o que sói acontecer em caso de prorrogações sucessivas.6 E, por sua vez, contratos com prazo de vigência que, nada obstante, prevejam o direito à resilição unilateral poderão suscitar dificuldades adicionais.
Qual o objeto de proteção da regra?
A regra do parágrafo único do art. 473 CC visa à proteção do que se pode chamar de investimentos de confiança, isto é, investimentos feitos por uma das partes na confiança de que o direito à extinção unilateral não seria exercido pela contraparte antes de transcorrido prazo compatível com o investimento realizado. A expressão designa, portanto, custos dispendidos na expectativa de que poderiam ser recuperados com a execução contratual. A proteção contra a extinção unilateral, entretanto, não se volta à expectativa de lucratividade esperada pelo denunciado, mas se delimita a proteger o direito à amortização. Na doutrina, é majoritário o entendimento de ser este o escopo protetivo da norma.7 Na jurisprudência, faz-se menção a decisão do TJPR, mantida pelo STJ (REsp 1.107.641/PR), em que se discutiam os efeitos indenizatórios de denúncia imotivada de contrato de prestação de serviço sem prazo, após apenas dois meses de vigência. O TJPR reformou pontualmente a sentença a quo, para afastar o cabimento de lucros cessantes e manter a indenização conferida delimitada à recuperação dos investimentos realizados, in verbis: “o prazo razoável, exigido no dispositivo legal, refere-se ao tempo necessário para recuperar o valor investido para a execução do contrato, e não lucrar. Note-se que, se a apelada não tivesse realizado qualquer investimento, a norma não incidiria no caso concreto”.
Quais os critérios necessários para qualificação do investimento protegido?
Nem todo investimento realizado no curso da execução contratual é protegido pelo dispositivo. E, vai sem dizer, a mera invocação da regra legal não basta, sendo necessário bem preenchê-la. O ônus argumentativo e probatório recai sobre o denunciado, a quem sua aplicação favorece. Os critérios para configuração do que sejam investimentos de confiança são extraídos do texto legal, que faz referência a investimentos consideráveis, vinculados à natureza do contrato e à sua execução. Ainda que esses qualificativos devam ser preenchidos in concreto, é possível propor parâmetros abstratos e úteis à sua concretização. São eles:
(1) vinculação à natureza do contrato: a proteção dirige-se a contratos de duração que exijam a realização de investimentos consideráveis ("dada a natureza do contrato" e "investimentos consideráveis"). Custos recorrentes, usuais e não vultosos que pertençam ao cotidiano e à normalidade da atividade não estão abrangidos pela proteção.8 Nesse sentido, no contexto de contrato para prestação de serviços de captação de clientes para gás canalizado, o TJSP (1103660-23.2019.8.26.0100) decidiu que a contratação de pessoal e a locação de veículos são gastos que fazem parte do risco ordinário do negócio e estão fora da proteção da norma.
(2) vinculação à execução do contrato: apenas investimentos realizados especificamente para a execução do contrato denunciado são apanhados pela regra (“investimentos consideráveis para a sua execução”). Decisão do TJSP (0112311-61.2005.8.26.0000) afastou o cabimento de indenização pleiteada por clínica médica pela compra de equipamentos médicos, dentre outras razões, porque os equipamentos não serviam apenas ao cumprimento do contrato mantido com o plano de saúde. A existência de exclusividade é critério útil para demonstrar a vinculação entre o gasto e a execução do contrato, mas daí não vai que seja requisito necessário.
(a.3) adequação comercial: os investimentos protegidos devem ter sido realizados seguindo o padrão do mercado e o critério de um comerciante “ativo e probo”.9 Investimentos que não passem por esse teste não dvem ser protegidos, pois a regra não se presta a sanar más escolhas empresariais. Decisão do TJSP (1002765-32.2018.8.26.0248) afastou a indenização pela aquisição de câmeras de segurança no contexto de contratação de prestação de serviços de segurança privada, por considerar não ter havido prova de que tais investimentos, realizados no segundo ano de vigência do contrato, eram necessários ao tempo em que realizados e, por fim,
(4) não recuperabilidade dos investimentos: em jogo estão investimentos que, com a extinção da relação, qualificam-se como irrecuperáveis ou sunk costs. Daí vai que a proteção não esteja direcionada a investimentos que possam ser levantados, reutilizados ou vendidos, ou seja, que possam ser recuperados (e que são tutelados, se for o caso, pela concessão do aviso prévio em sua função mais vulgar). Na jurisprudência, a noção de custos irrecuperáveis é extraída de decisão do STJ (REsp n. 1.580.278/SP), ainda que os fatos em discussão não guardem pertinência temática com aquela aqui proposta. A discussão girava em torno da análise da abusividade de cláusula contratual em contrato de turismo que estabelecia multa de 25 a 100% em caso de cancelamento do serviço pelo consumidor. A Relatora Ministra Nancy Andrighi considerou aplicáveis, por analogia, os parâmetros do art. 473, parágrafo único CC para fixação dos limites do exercício da autonomia privada na previsão da penalidade. E, ao fazer tal exercício, afirmou: “esses limites devem, assim, corresponder: a) aos investimentos irrecuperáveis – assim entendidos aqueles que não possam ser reavidos pela cessão do objeto do contrato a terceiros – realizados pelo contratante inocente”.
Em complemento a tais considerações iniciais, surgem ao menos três pontos que suscitam relevantes dúvidas: (a) há outros critérios auxiliares, ainda que não necessários, para preenchimento da norma?; (b) podem as partes afastar ou modular a aplicação do art. 473, parágrafo único? e, mais especialmente (c) qual a consequência da não observância do prazo mínimo de vigência pelo denunciante?
Como já se tornou usual fazer promessas ao final das colunas na AGIRE, tais questões serão retomadas em uma próxima coluna.
Renata Steiner
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente.
GOMES, Orlando. Contratos. Coord. Edvaldo Britto. 26ª edição, rev., atual e aum. António Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de Crescenzo Marino. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 183.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XXV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 378, § 3.081.
Por precisão terminológica, a hipótese não será de denúncia, mas, antes, de resilição: “daí uma primeira diferença essencial: a denúncia evita que se continue a relação, a resilição desfaz a eficácia a partir de determinado ponto.” (LEONARDO, Rodrigo Xavier. Denúncia e a Resilição: críticas e propostas hermenêuticas ao art. 473 do CC/2002 brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 7, pp. 95-117, abr.-jun., 2016, acesso pela RTOnline). No TJSP colhem-se decisões em sentidos discrepantes sobre a possibilidade de contratação da possibilidade de extinção unilateral em contratos com prazo determinado. Admitindo-a, vide a Apelação Cível 9076248-39.2009.8.26.0000; negando-a, vide Apelação Cível n. 0134251-29.2012.8.26.0100.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 731.
Cf. REALE, Miguel. Exposição de Motivos do Supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil, doutor Miguel Reale, datada de 16 de janeiro de 1975. Imprenta: Rio de Janeiro, Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro "EMERJ", 1998.
Sobre o tema, vide o texto magistral de REQUIÃO, Rubens. Representação comercial - Contrato a prazo determinado reiteradamente prorrogado. In: Aspectos Modernos de Direito Comercial (Estudos e Pareceres). São Paulo: Saraiva, 1977, p. 173-185.
Vide, por todos: FORGIONI, Paula. Contrato de Distribuição. 3. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014; SCHREIBER, Anderson. Comentários ao artigo 473. In: SCHREIBER, Anderson et al. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 339; TEPEDINO, Gustavo. A Resilição Unilateral Imotivada nos Contratos Sucessivos. In Soluções Práticas, v. 2, p. 173-198, nov., 2011.
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao Novo Código Civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 366.
FORGIONI, Paula. Contrato de Distribuição. 3. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 314.