#58. Na pauta do STJ: SELIC pode ser contratada como índice para cálculo de correção monetária?
A polêmica taxa SELIC volta à coluna “Em Pauta” (ela já foi tratada na AGIRE #40), mas, agora, sob perspectiva diversa daquela em que costuma ser estudada: no REsp n. 2.011.360/MS (DJe de 27/10/2022), objeto de análise da coluna, discutiu-se a validade de previsão contratual em que as partes adotaram a SELIC como índice de correção do montante devido.
A discussão de fundo envolvia contrato de compra e venda de terreno cujo pagamento fora ajustado em parcelas mensais e sucessivas. Do contrato, constava a seguinte previsão: “Todas as parcelas relativas a este contrato, previstas nesta cláusula ou em outras cláusulas deste instrumento, serão corrigidas pela taxa equivalente à SELIC – Sistema Especial de Liquidação e Custódia”.
Em ação revisional, a compradora pretendia alterar o índice contratado. O pedido teve como fundamento: (a) o fato de a SELIC não ser índice de correção monetária; (b) o fato de a SELIC englobar juros e correção monetária e (c) o fato de que o contrato previa, além da atualização das parcelas, a incidência de juros de mora1. A decisão de primeiro grau acolheu o pedido da autora, pois “a Taxa Selic não pode ser aplicada como índice de atualização monetária pois esta compreende tanto a correção como os juros de mora, sendo vedada a utilização em conjunto com qualquer outra taxa de juros” e porque “no contrato há previsão expressa de incidência de juros mortórios (sic) é indeivida (sic) a utilização da Taxa SELIC...”.2 A sentença lançada foi mantida em segundo grau, ao que se seguiu o recurso especial ora noticiado.
No STJ, o especial recebeu relatoria da Ministra Nancy Andrighi (Terceira Turma), que assim resumiu o propósito recursal: “definir se é possível a utilização da taxa Selic como índice de correção monetária das parcelas ajustadas em contrato de compra e venda de imóvel.” A resposta, afirmativa, foi obtida após serem traçadas as distinções entre as finalidades da correção monetária e dos juros moratórios.
Correção monetária
A correção monetária, nas palavras extraídas da decisão, “serve para recompor o poder aquisitivo original da moeda, corroído pelos efeitos da inflação, nada acrescentando ao seu valor”. Em assim sendo, e por invocação de frase encontrada em diversos arrestos da Corte Superior, concluiu-se que não constitui um plus que se acrescenta, mas um minus que se evita.3
Juros moratórios
Já os juros foram definidos no acórdão como frutos civis do capital, obrigação acessória que tem finalidade de recompensar o credor (juros remuneratórios ou compensatórios) ou ressarcir a demora no pagamento do débito (juros moratórios).
Como servem a finalidades diversas, a decisão concluiu ser possível cumular, em um mesmo contrato, a incidência de juros remuneratórios e de juros moratórios. E, ademais, por referência à decisão havida no EREsp 670.117/PB, confirmou ser possível a contratação de juros remuneratórios em contratos de compra e venda de imóveis. No caso de operações de compromisso de compra e venda vinculados à incorporação imobiliária, tais juros são comumente chamados “juros no pé”, pois cobrados antes da entrega do imóvel, durante a fase de implantação do empreendimento.
Fixadas tais definições, a decisão analisou, então, a validade da contratação da SELIC como índice de correção monetária no caso concreto.
O caso concreto: a previsão contratual de SELIC
O decisum partiu da premissa de que a SELIC contém em sua composição juros e correção monetária – entendimento recorrente na jurisprudência da Corte4 – e daí concluiu que sua aplicação como índice de correção monetária não pode ser cumulada com juros remuneratórios, sob pena de bis in idem: “tem-se que se for pactuada a incidência da taxa Selic a título de correção monetária das parcelas contratuais, não será possível cumulá-la com juros remuneratórios, uma vez que os juros já estão englobados nesse índice.” Nada impede, porém, que sua aplicação com índice de correção seja cumulada com juros moratórios, pois estes desempenham função diversa.
Isso colocado, o STJ desconstruiu a premissa sobre a qual havia sido erguida a decisão recorrida – ou seja, de que a contratação da taxa SELIC como taxa de correção monetária era inválida por haver cumulação de sua incidência com juros moratórios, também contratados. Reconheceu-se, então, a possibilidade in concreto de utilização da taxa SELIC para reajuste das prestações devidas.
O caminho percorrido pela decisão é coerente em relação à distinção de funções entre correção monetária e juros e, nestes, entre juros remuneratórios e moratórios. Resta, entretanto, uma pergunta em aberto que não foi enfrentada: podem as partes livremente contratar o índice de correção monetária aplicável ao reajuste das parcelas contratuais?
Correção monetária: período da normalidade vs. período patológico
A correção monetária é há muito conhecida dos Tribunais brasileiros. Trata-se de mecanismo fundamentalmente vinculado, como a própria nomenclatura indica, a corrigir a perda da moeda em razão do fenômeno inflacionário.
Do ponto de vista normativo, é útil distinguir a correção monetária devida no período patológico (i.e., quando já presente o inadimplemento) e aquela que pode incidir no período da normalidade (i.e., quando do pagamento da prestação no tempo, lugar e modo devidos).
Correção monetária no momento da patologia contratual: O tratamento legislativo conferido à fase patológica, ligada ao inadimplemento, é encontrado nos art. 3895, 395, caput6 e 404, caput7do Código Civil. Em todos eles, lê-se que a correção monetária é uma das consequências aplicadas ao devedor inadimplente, o qual fica sujeito ao pagamento de atualização monetária “segundo índices oficiais regularmente estabelecidos”.
Correção monetária no momento de normalidade contratual: No que toca ao período de normalidade contratual, a regra base é aquela do art. 315 do Código Civil8, que estabelece que as dívidas pecuniárias serão pagas em dinheiro e pelo seu valor nominal. Nada obstante a adoção do princípio do nominalismo, é reconhecida a possibilidade de reajuste do valor da prestação em razão do fenômeno inflacionário. A aplicação de reajuste automático, ou seja, independente de convenção das partes neste sentido, enseja relevante discussão, cujo enfrentamento não se pretende neste momento.9 De toda sorte, não há dúvidas de que as partes podem contratar a correção monetária para o período da normalidade, desde que observem o quanto disposto na legislação extravagante. No âmbito dos contratos em geral, convém fazer referência ao art. 28 da Lei 9.0691995 (Lei do Plano Real) e o art. 2º, § 1º da Lei 10.192/2001 (Lei de Medidas Complementares ao Plano Real), que estipulam a periodicidade mínima para contratação de correção monetária:
“Art. 28. Nos contratos celebrados ou convertidos em REAL com cláusula de correção monetária por índices de preço ou por índice que reflita a variação ponderada dos custos dos insumos utilizados, a periodicidade de aplicação dessas cláusulas será anual.
§ 1º É nula de pleno direito e não surtirá nenhum efeito cláusula de correção monetária cuja periodicidade seja inferior a um ano.”
“Art. 2o É admitida estipulação de correção monetária ou de reajuste por índices de preços gerais, setoriais ou que reflitam a variação dos custos de produção ou dos insumos utilizados nos contratos de prazo de duração igual ou superior a um ano.
§ 1o É nula de pleno direito qualquer estipulação de reajuste ou correção monetária de periodicidade inferior a um ano.”
Diferentemente dos artigos mencionados no item anterior, sobre o período patológico, tais dispositivos fazem referência a “índices de preço”, “índice que reflita a variação ponderada dos custos dos insumos utilizados” e “índices de preços reais, setoriais ou que reflitam a variação dos custos de produção e dos insumos”.10
Quid juris?
Em primeiro lugar, forçoso reconhecer uma realidade posta: não há índice oficial de correção monetária vigente no Brasil. Há, por outro lado, diversos índices setoriais, largamente utilizados e que se prestam a refletir a variação de custos de produção.
Em segundo lugar, o panorama normativo indica mandamento de que a função de correção da moeda deve ser refletida no índice aplicável. Ao fazer referência à variação ponderada de insumos, à variação de custos de produção e de insumos ou a índices de preços, o legislador deixou evidenciado que o índice de correção monetária serve para promover a adequação do valor da prestação à variação do poder aquisitivo da moeda para aquele contrato.
Em terceiro lugar, o disposto na legislação leva a concluir que, além das restrições quanto à periodicidade, não há liberdade irrestrita na escolha do índice contratual, o qual deverá guardar coerência com a finalidade para a qual é contratado. Tal conclusão é reforçada também desde a interpretação do disposto no art. 2º, § 3º da Lei sobre Medidas Complementares ao Plano Real, da qual se lê que são nulos expedientes que, na apuração do índice, produzam efeitos financeiros equivalentes aos de reajuste de periodicidade inferior a anual.
Retornando ao caso concreto julgado…
Retornando ao caso concreto analisado, diga-se, com base nas conclusões supra, que a SELIC não é, definitivamente, índice de correção monetária (pois, no mínimo, contém também remuneração do capital). Tal constatação nem mesmo era controvertida no caso concreto. Isso porque, da contestação apresentada no processo judicial, a defesa da manutenção da SELIC foi feita exatamente porque o índice serviria para remunerar o uso do capital, além de corrigir o valor da moeda: “Frise-se, portanto, que a aplicação da Taxa SELIC reflete a correção monetária do saldo devedor, mantendo, assim, o poder aquisitivo da moeda e, por outro lado, remunera a ré pelo financiamento realizado. Ora, se a parte autora não deseja pagar juros e correção monetária, que faça suas compras à vista, e não através de financiamentos/empréstimos, ainda que com o próprio proprietário do bem pretendido.”11 O cenário fático denota dúvida sobre se as Partes tinham em mente apenas e tão somente corrigir o valor das prestações, a despeito da redação adotada de que as parcelas seriam “corrigidas pela taxa equivalente à SELIC”. A discussão sobre a interpretação do contratado não foi desenvolvida com profundidade nas instâncias inferiores nem devolvida à apreciação do STJ, mas é um dado relevante para que se considere a possibilidade e os limites de adoção do entendimento exarado no julgado aqui comentado para outros casos. Em suma, se nesta situação específica a SELIC foi mantida, isso não significa haver autorização irrestrita para que ela possa ser contratada como índice de correção monetária na generalidade dos casos.
Renata Steiner
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente (FCIArb).
Petição Inicial, fls. 4-5, ESaj TJMS.
Sentença, fls. 130, ESaj TJMS.
Menção idêntica é feita nas seguintes decisões, citadas apenas exemplificativamente: recentemente, AgInt no REsp n. 1.938.969/DF; AgInt no REsp n. 1.925.630/DF (esse último, da Primeira Turma, referindo à SELIC como taxa de atualização aplicável ao atraso no pagamento de tributos federais); em 2017, REsp 1340199/RJ; em 2010, REsp 1.112.524/DF (rito dos repetitivos) e, de 1999, REsp 153.630/RS.
Vide, por todos: na jurisprudência de hoje, EDcl no REsp 2025166 /RS e AgInt no AREsp 2074535 / RJ; na jurisprudência de ontem, EREsp 201063 / RS.
Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Art. 404. As perdas e danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, serão pagas com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional.
Art. 315. As dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal, salvo o disposto nos artigos subseqüentes.
Farta doutrina defende a possibilidade de correção monetária no período da normalidade independente de previsão contratual. É o que se vê, por exemplo, da lição de Giovanni Nanni: “a correção monetária não é pena, mas mera reposição do valor quantitativo da moeda, pelo que deve sempre ser empregada para evitar o enriquecimento sem causa do devedor. Ela incide nas dívidas em geral, mesmo que as partes não tenham assim convencionado, sendo também aplicável nas hipóteses de inadimplemento (…)”. (Comentários ao art. 316, CC. NANNI, Giovanni Ettore. Comentários ao Código Civil. Direito Privado Contemporâneo. Coord. Giovanni Ettore Nanni. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 501).
Outros dispositivos legais voltados a setores específicos contém redação diversa para lidar com o mesmo problema (correção monetária no período da normalidade). Dentre eles, destacam-se: (a) art. 6º, LVIII da Lei 14.133/2021 (nova Lei de Licitações, que define: “reajustamento em sentido estrito: forma de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro de contrato consistente na aplicação do índice de correção monetária previsto no contrato, que deve retratar a variação efetiva do custo de produção, admitida a adoção de índices específicos ou setoriais”, do qual se destaca o mandamento de que a correção deva “retratar a variação efetiva do custo” e (b) art. 46 da Lei 10.931/2004, no âmbito das incorporações imobiliárias: “nos contratos de comercialização de imóveis, de financiamento imobiliário em geral e nos de arrendamento mercantil de imóveis, bem como nos títulos e valores mobiliários por eles originados, com prazo mínimo de trinta e seis meses, é admitida estipulação de cláusula de reajuste, com periodicidade mensal, por índices de preços setoriais ou gerais ou pelo índice de remuneração básica dos depósitos de poupança”.
Contestação, fls. 72, ESaj TJMS.