# 62. Responsabilidade pré-contratual: método para definição do dano indenizável
A possibilidade de ocorrência de atos ilícitos na fase de negociações é há muito reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência brasileiras.1 A despeito disso, a temática sobre responsabilidade pré-contratual permanece um terreno fértil para verticalização de questões ainda controvertidas. Dentre elas, destaca-se com evidência o problema do quantum reparatório. Afinal, qual o dano indenizável na responsabilidade pré-contratual?
Uma resposta simplista, que se deve evitar, dirá que o dano indenizável deva ser calculado na medida do interesse negativo, isto é, mediante condução da parte lesada à situação em que estaria sem o contrato e sem as negociações – os conceitos de interesse positivo e de interesse negativo foram tratados na AGIRE #44. Essa vinculação tem como justificativa recorrente o momento da prática do ilícito, anterior à formação do contrato, e o argumento de que não se poderia considerar como parâmetro indenizatório o contrato não concluído ou não eficaz ou validamente concluído. A constatação fática sobre o momento da falta não é, aqui, colocada em dúvida; a consequência necessária que se costuma defender a partir dela, sim.2
É verdade que, na generalidade dos casos, a medida da indenização na responsabilidade pré-contratual será mesmo o interesse negativo. Isso não quer dizer, no entanto, que se possa aderir de pronto à solução que o afirma de forma apriorística.3
Responsabilidade pré-contratual como “conceito compósito”
A impossibilidade de adoção de resposta única e pré-concebida a propósito da indenização justifica-se pelo fato de serem plurais as situações reconduzíveis ao rótulo da responsabilidade pré-contratual. Na doutrina portuguesa, Carlos Alberto da Mota Pinto já advertia que tal responsabilidade é um conceito compósito: “a responsabilidade ‘in contrahendo’ abrange uma multiplicidade de fenómenos demasiado complexa para ser compaginar com o sintetismo dum dever único.”4
Para ilustrar o acerto da afirmação, basta pensar que, sob a óptica da responsabilidade pré-contratual, encontram-se situações em que o contrato foi concluído, porém invalidamente (o que abrange a generalidade dos casos de invalidade imputável a uma das partes); situações em que o contrato foi concluído validamente, mas com conteúdo indesejado (o que abrange, por exemplo, os casos de dolo acidental), bem como situações em que o contrato não chegou a ser concluído (neste grupo, encontra-se a figura que é mais recorrentemente reconduzida à forma da responsabilidade pré-contratual, qual seja, a ruptura injustificada de tratativas).
O dever cuja violação enseja responsabilidade não será idêntico em todos estes grupos de casos que, ademais, apenas exemplificam uma realidade muito mais complexa.5
Fazendo coro à lição de Menezes Cordeiro, jurista que é crítico à adoção dos conceitos de interesse positivo e de interesse negativo como dogmas vinculados a hipóteses lesivas pré-concebidas, as múltiplas situações reconduzíveis à responsabilidade pré-contratual nem sempre levarão à indenização do interesse negativo, havendo-se de verificar, in concreto, o interesse violado e, consequentemente, o interesse reparável.6
Proposta de método: duplo filtro
Um possível método para definir com segurança o dano indenizável consiste na cisão da análise em dois momentos. A ele dá-se o nome de “método do duplo filtro”.
Em um primeiro filtro, pode-se adotar o momento em que a falha se deu como indicativo tendencial da definição do sentido da indenização. Nesse sentido, como o interesse positivo compõe a relação de reparação de forma a conduzir o lesado à situação de cumprimento do contrato, é natural supor que, em linha de princípio, a sua indenização exija tanto a existência quanto a validade do contrato; da mesma forma, como o interesse negativo é voltado à condução do lesado à situação e que estaria se não tivesse confiado nas negociações, pode-se supor que sua indenização esteja ligada aos casos de não formação válida ou eficaz do contrato. Daí vai que, tendencialmente, o interesse positivo esteja ligado às violações contratuais e o interesse negativo àquelas violações na fase anterior à formação do vínculo.
Obtido tal direcionamento tendencial, há de se dedicar à compreensão aprofundada sobre o evento lesivo. Nesse segundo filtro, vem à tona a necessidade de se depurar, com precisão, qual o evento lesivo (ou, em outras palavras, qual o dever ou a obrigação que foram violados) vis-à-vis qual o regime consequencial aplicável em espécie (que pode não se limitar apenas à reparação do dano, como se passa, por exemplo, no regime de resolução contratual por inadimplemento). Esse resultado poderá confirmar o sentido tendencial obtido no primeiro filtro, mas poderá também levar a uma “correção de rota”, com a inversão do sentido da indenização antes obtido.
Fica evidente que o segundo filtro será sempre o fiel da balança e que é nele que se desenvolve a atividade mais relevante do aplicador do Direito. Trata-se, como já tive oportunidade de afirmar em trabalho acadêmico, de relevante e bem-vindo efeito colateral da adoção dos conceitos de interesse positivo e de interesse negativo no Direito brasileiro, pois coloca em evidência a essencialidade de bem compreender a ligação entre o evento lesivo e o dano indenizável à luz do regime consequencial aplicável. Em outras palavras, esse caminho auxilia a definição da situação em que o lesado deveria estar não fosse o evento lesivo.
Aplicação do duplo filtro: o caso da ruptura injustificada de tratativas
Para dar concretude ao método, ele é aqui aplicado na situação específica de responsabilidade pré-contratual por ruptura injustificada de tratativas, reconduzível ao grupo de casos de responsabilidade pela não formação do contrato.
Como pano de fundo toma-se, em homenagem, caso julgado sob relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino no Superior Tribunal de Justiça. A discussão girava em torno dos seguintes fatos: duas sociedades empresárias iniciaram negociações para celebração de um contrato de prestação de serviços de organização de evento, programado para ocorrer cerca de seis meses após o início dos contatos. As partes se reuniram diversas vezes e houve troca de correspondências eletrônicas. A pretensa contratada, diante do curto prazo até a data do evento, realizou visitas técnicas e iniciou a contratação de terceiros, tendo tido despesas da cerca de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). O evento, no entanto, foi inicialmente postergado e, após, cancelado em definitivo. Nenhum contrato entre as partes negociantes foi celebrado. A decisão do STJ, confirmando o quanto decidido na instância inferior (TJSP) entendeu que os fatos levavam à configuração da ruptura de tratativas, violadora da boa-fé, pois as negociações já haviam chegado a um ponto em que havia expectativa de que o contrato seria celebrado (REsp n. 1.367.955/SP).
À luz do primeiro filtro, não há dúvidas de que o parâmetro indenizatório tendencial seja o interesse negativo, na medida em que o ilícito se deu antes da formação do contrato (que, no caso analisado e naqueles de ruptura injustificada de tratativas em geral, nem mesmo chegou ou chegará a existir). À luz do segundo filtro, deve-se depurar com atenção qual o dever que, violado, fez surgir o dever de indenizar.
Aí se diga – simplificando uma longa história – ser, hoje, amplamente reconhecido no Direito brasileiro que um vínculo especial se forma entre as partes que negociam mesmo antes que se forme o contrato pretendido por elas e que essa vinculação justifica a criação de deveres de proteção da confiança. A confiança que é protegida não se volta à formação do contrato em negociação, mas à conduta leal e proba das partes no iter negocial. Isso quer dizer que a formação ou não do contrato dependerá da evolução das negociações e não é mandatória; mas é mandatória a observância do dever de conduzir as negociações de forma correta e, em especial, de não se criar expectativa de que o contrato será concluído para, posteriormente, a violar abusivamente.
Daí vai que a confiança violada – no caso específico da ruptura injustificada de tratativas, frise-se – protege a boa condução das negociações, mas mantém intocado o direito das partes de não contratar. Em assim sendo, o evento lesivo, do qual decorre o dever de reparar, não se confunde com a não formação do contrato, afinal, a parte que se retira da mesa de negociação ainda poderia escolher não contratar. O dever violado, portanto, é a criação e a posterior violação de expectativas quanto à conclusão futura do contrato.
Isso significa que a tendência reparatória obtida no primeiro filtro é confirmada no segundo filtro: não fosse o evento lesivo (criação da confiança e, posteriormente, sua violação) o lesado não teria agido na expectativa legítima de que a contratação chegaria a bom termo e não teria se portado de acordo com tal expectativa. O dano indenizável é medido pelo interesse negativo, de forma que o lesado deva ser colocado na situação em que estaria se não houvesse confiado no bom andamento das negociações.
Confirmada a tendência reparatória voltada ao interesse negativo, ao menos dois pontos importantes permanecem em aberto:
o primeiro deles está na necessária definição dos limites que qualificam a ruptura injustificada de tratativas, em dois tempos: (i) em primeiro lugar, é preciso saber quando se cria a expectativa legítima que não poderá ser rompida abrupta e abusivamente, pois é certo que ela não é criada assim que se iniciam os contatos negociais, e (ii) em segundo lugar, é preciso também saber quando se deixa o âmbito da mera expectativa para trás e se cria uma relação contratual ou, excepcionalmente, um dever de contratar, o que releva especialmente nos casos em que não haja instrumento contratual formal;
o segundo deles repousa na constatação de que a confirmação de que a indenização se mede pelo interesse negativo é apenas metade do caminho a percorrer, sendo necessário, então, bem preencher a relação jurídica de reparação civil com os danos emergentes e lucros cessantes (ex vi art. 402 CC7) necessários para conduzir o lesado à situação em que deveria estar sem o evento lesivo.
Renata Steiner
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente (FCIArb).
Vide, por todos, texto de Antônio Chaves publicado em 1983 (Responsabilidade pré-contratual. Revista de Direito Civil (RDCivil 23/1983, jan-mar. 1983); na jurisprudência, referência é feita o famoso “caso dos tomates”, julgado em 1991 pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS. Ap. Cív. nº 591028295, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Julgado em 06/06/1991). Sobre ele, não se pode deixar de fazer referência às relevantes provocações, inclusive a propósito da recondução dos fatos à responsabilidade pré-contratual, feitas recentemente por André Rodrigues Corrêa. (Sobre um punhado de tomates, de novo (uma pequena reflexão sobre um grande caso). In: BENETTI, Giovana [et. al.]. Direito, cultura, método. Leitura da obra de Judith Martins-Costa. Volume I. Rio de Janeiro: GZ, 2019).
Em texto acadêmico, procurei demonstrar que a vinculação da responsabilidade pré-contratual à reparação do interesse negativo foi erguida a verdadeiro dogma em diversas experiências jurídicas estrangeiras. Tal fato foi responsável por parte das ácidas críticas à utilidade do par conceitual – interesse positivo e interesse negativo – exatamente porque a definição do parâmetro indenizável não pode ser feita sem que se analise no caso concreto, e com precisão, o dever violado. Não por acaso, todos estes dogmas falharam e foram superados. (STEINER, Renata C. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2017, Capítulo 2 - Interesse positivo e interesse negativo: desenvolvimento teórico no Direito estrangeiro).
Nas XI Jornadas de Direito Civil, realizadas em 2022, foi proposto enunciado, não aprovado em Plenária, com a seguinte redação: “no campo da responsabilidade pré-contratual, inexistindo contrato firmado, nem mesmo tácito, as perdas e danos restringem-se ao interesse negativo do credor”. O ponto nodal que, a meu ver, justifica a não aprovação do enunciado, ao menos na redação proposta, é a tentativa de definição apriorística da medida da indenização em desconsideração à pluralidade de situações lesivas que possam ser reconduzidas à responsabilidade pré-contratual.
MOTA PINTO, Carlos Alberto. A responsabilidade pré-negocial pela não conclusão dos contratos. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Suplemento XIV, p. 157-158.
Apenas para citar um exemplo que não se enquadra exatamente nas figuras apresentadas de forma exemplificativa, chama-se atenção ao disposto no art. 430 CC, o qual dispõe que “se a aceitação, por circunstância imprevista, chegar tarde ao conhecimento do proponente, este comunicá-lo-á imediatamente ao aceitante, sob pena de responder por perdas e danos.” O dispositivo lida com a situação de a aceitação à proposta chegar a destempo ao destinatário, já quando ineficaz a proposta. A lei não impõe a conclusão do contrato, mas cria ao destinatário o dever de informação ex lege que, violado, levará à obrigação de indenizar. Trata-se, com clareza, de hipótese de responsabilidade pré-contratual.
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Da boa fé no Direito Civil. 2ª reimpressão. Coimbra: Almedina, 2001, p. 585. No mesmo sentido a doutrina italiana de Angelo Luminoso, que afirma que a responsabilidade pré-negocial é um instituto não homogêneo que pode congregar ilícitos que importem a lesão ao interesse positivo ou ao interesse negativo, os quais terão em comum unicamente o fato de que vem definido na fase de tratativa ou de formação do contrato. (LUMINOSO, Angelo. “La lesione dell’interesse contrattuale negativo (e dell’interesse positivo) nella responsabilità civile”. In: Contratto e impresa. Quarto Ano, Cedam: Padova, 1988, p. 803).
Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.