#88. Na pauta do STJ: efeitos da cláusula de “take or pay” em contrato de compra e venda de gás natural
São poucas as disposições contratuais que contêm comando tão direto – em rigor, o comprador tem apenas duas alternativas: ou “take”, ou “pay” –, mas a tropicalização dessa fórmula contratual importada da common law tem deixado a desejar em diversos aspectos, comprometendo a própria função da cláusula, que nem sempre resiste ao “clima” da Mata Atlântica, povoada por “jabuticabas” que só se encontram aqui. Embora não seja figura habitué da pauta do STJ – como o é das pautas arbitrais –, pelo critério de busca “take or pay” (entre aspas), é possível identificar dois casos recentes que tratam da cláusula: os Recursos Especiais 1.984.655/SP1 e 2.048.957/MG,2 sendo o último – não apenas por ser o mais atual – o protagonista deste “Em Pauta” que acalora a semana da nossa AGIRE.3
Pano de fundo
O caso concreto gira em torno de uma ação de cobrança decorrente do inadimplemento de um contrato de compra e venda de gás natural comprimido, firmado em 15.04.2008. No referido acordo, a compradora assumiu a obrigação de pagar, no mínimo, o valor relativo a 36.900 m³ de gás por mês, mas, a partir de junho de 2008 – isto é, cerca de dois meses depois –, deixou de retirar (“take”) e também de quitar (“pay”) o montante devido. Diante disso, as partes renegociaram os termos do contrato e ajustaram a redução do consumo mínimo mensal, que passou a ser de 28.000 m³, sendo ainda facultado à compradora o parcelamento do saldo remanescente da dívida em dez prestações mensais de R$ 6.319,00, o que foi reiteradamente descumprido.
Sentença
A sentença julgou procedente o pedido condenatório formulado pela vendedora. Apesar disso, reconheceu que o recebimento, pela vendedora, de um valor pela disponibilização de um volume mínimo de gás não consumido configurava “enriquecimento ilícito”, como se as partes, negociadoras experimentadas do mercado de energia, não pudessem formular tal tipo de ajuste. Partindo dessa premissa, que vai de encontro à própria finalidade da cláusula, a sentença impôs à vendedora a obrigação de fornecer à compradora o volume de gás não consumido, mas – no entender da sentença – “pago”. Ou seja: a vendedora foi obrigada a entregar à compradora a diferença entre a quantidade mínima de gás convencionada e aquela menor efetivamente utilizada, como se o pagamento do que se acordou como “consumo mínimo” conferisse à compradora o direito de obter, no período subsequente, a quantidade mínima acrescida da sobra do mês anterior.
Funções da cláusula
No cerne da discussão estão, portanto, as funções da cláusula de “take or pay” (ou “ToP”, alcunha pela qual ficou conhecida). Como observa a doutrina,4 dessa cláusula despontam duas principais finalidades:
(i) Por meio dessa disposição contratual, que nada mais é do que um instrumento de gestão de riscos, o vendedor assume o risco de o preço do gás vir a aumentar, enquanto o comprador, por outro lado, assume o risco de a sua demanda pelo gás vir a diminuir;
(ii) Considerando todas as especificidades do setor,5 a cláusula de “take or pay” é muito importante para garantir determinado fluxo financeiro (estável) para o negócio e, assim, o retorno adequado do investimento dos diversos agentes econômicos envolvidos na produção, transporte e armazenagem de gás natural. O objetivo da cláusula, portanto, é garantir uma receita mínima – e previsível – para o negócio.
Em linhas gerais, o conteúdo da cláusula indica que a obrigação do comprador é a de pagar por uma quantidade mínima de gás natural, retirando-a ou não para uso. O pagamento deve ocorrer, portanto, independentemente da efetiva retirada ou utilização do gás natural – essa conclusão revela que, no caso concreto, a tese da sentença é mais um castelo de cartas.
Não há, em definitivo, que se falar em “enriquecimento ilícito” nessa hipótese, porque nada há de ilícito em se pactuar um consumo mínimo para garantir o fluxo financeiro do projeto, tanto mais em se tratando de um contrato eminentemente paritário, tampouco em “enriquecimento sem causa”, porque o contrato aqui é causa (a temática do enriquecimento sem causa já foi tratada na AGIRE #85). A cláusula “não foi concebida para penalizar o comprador que não retira a quantidade indicada de gás, nem para criar a possibilidade de lucros injustificados para o vendedor”,6 mas antes para assegurar o fluxo de caixa do negócio, e não necessariamente o fluxo de gás. Exatamente por isso, “o serviço da dívida não poderia depender do comportamento da curva de procura dos consumidores pelo energético”.7
Os desdobramentos no TJ/MG
A fundamentação precária da sentença levou ambas as partes a recorrer ao TJ/MG, que, por sua vez, negou provimento aos dois recursos de apelação. Embora tenha reconhecido a legalidade da cláusula,8 a decisão de 2ª instância manteve o entendimento de que a vendedora deveria entregar à compradora a diferença entre a quantidade mínima de gás convencionada e aquela efetivamente utilizada. O caso, então, foi parar...
... na pauta do STJ
No julgamento do Recurso Especial 2.048.957/MG, após discorrer sobre as funções da cláusula de “take or pay”, a Terceira Turma do STJ, sob a batuta da Ministra Nancy Andrighi, entendeu que, “[e]specificamente nos contratos de fornecimento de gás natural, espécie contratual debatida nos presentes autos, se a adquirente não consumir o volume mínimo de gás previsto no instrumento negocial, deverá pagar o valor definido na cláusula de take or pay. Por se tratar de um contrato de trato sucessivo, no período subsequente, ela não terá direito ao recebimento da diferença entre o volume mínimo, pela qual pagou, e a quantia efetivamente consumida. A desconsideração do risco assumido pela adquirente acarretaria a ineficácia da cláusula de take or pay. (...) Portanto, a obrigação de fornecimento imposta pelas instâncias de origem à recorrente revela-se descabida”.9
Qualificação controvertida
A qualificação da cláusula de “take or pay” é um problema à parte,10 cuja solução, em certa medida, depende também do seu conteúdo.11 O acórdão proferido pelo STJ no julgamento do Recurso Especial 2.048.957/MG passa ao largo dessa discussão, que é superficialmente enfrentada no julgamento do Recurso Especial 1.984.655/SP. Neste, afirmou a Terceira Turma que a “(…) cláusula take or pay diz respeito à própria obrigação principal, porquanto contempla obrigação de pagar quantia. Diversamente da cláusula penal, a cláusula take or pay não pressupõe a inexecução da obrigação principal, mas compõe a própria obrigação, já que define o valor a ser pago pela disponibilização de um volume específico de produtos e serviços. Portanto, a cláusula de take or pay tem natureza obrigacional e não de cláusula penal, motivo pelo qual está sujeita ao regime geral do direito das obrigações. É importante consignar, todavia, a necessidade de avaliar-se, em cada hipótese, a finalidade dos contratantes na estipulação da cláusula (art. 112 do CC/02). Afinal, não se pode descartar a possibilidade de as partes denominarem determinada disposição contratual de ‘cláusula de take or pay’ e tratar-se, em verdade de uma cláusula penal”.12
Além-mar
A compreensão da função e, principalmente, da natureza jurídica da cláusula repercute também em outros campos para além do Direito Civil, de onde se pode extrair exemplos interessantes. No julgamento do Recurso Especial 1.984.655/SP, por exemplo, a identificação da natureza jurídica obrigacional da cláusula de “take or pay” foi determinante para que a Terceira Turma entendesse que a inserção dessa espécie de disposição em contrato de compra e venda de gás natural não desnatura o negócio jurídico, que não deixa de ser uma compra e venda. A partir dessa premissa, a Terceira Turma concluiu que é possível emitir duplicadas cujo valor constante do título seja calculado com base na cláusula de “take or pay”.13
Onerosidade excessiva
Muito já se discutiu sobre a teoria da onerosidade excessiva, adotada pelo legislador brasileiro nos arts. 478 a 480 do Código Civil de 2002. A despeito de a literalidade do caput do art. 478 do Código Civil aludir expressamente à resolução do contrato na hipótese de excessiva onerosidade, em homenagem ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, tal dispositivo vem sendo interpretado conjuntamente com o art. 317 do Código Civil,14 de modo que se priorizará a manutenção do contrato – isto é, a revisão em detrimento da resolução –, desde que seja realmente possível restaurar o equilíbrio contratual perdido.
No caso específico da compra e venda de gás natural, a dificuldade prática de fazer incidir as referidas normas não está tanto no caráter supostamente aleatório do negócio, que é outra questão bastante controvertida,15 mas antes no fato de haver, por trás do contrato, uma “sucessão de relações jurídicas, submetidas a disciplinas normativas não necessariamente compatíveis entre si”.16 Isso, por si só, não deve afastar de plano a possibilidade de revisão, mas é importante examinar se, no caso concreto, estão presentes os seus pressupostos de aplicação, para que o comprador não fique estimulado a pleitear a revisão do contrato sempre que sua retirada de gás fique aquém do mínimo.17 A tropicalização da cláusula de “take or pay” é mesmo um desafio, mas pelo menos nossas jabuticabas têm sabor único.
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Na pauta do STJ: efeitos da cláusula de “take or pay” em contrato de compra e venda de gás natural. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 88, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire88>. Acesso em DD.MM.AA.
STJ, 3ª T., REsp 1.984.655/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, v.u., j. 29.11.2022.
STJ, 3ª T., REsp 2.048.957/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, v.u., j. 18.04.2023.
E acende a sua segunda-feira, leitor(a) da AGIRE, que nos ajuda muito acompanhando, compartilhando e divulgando as colunas.
Leonardo de Campos Melo, “Cláusula de Take or Pay: Natureza Jurídica”. Disponível em: <https://www.academia.edu/43024513/Cl%C3%A1usula_Take_or_Pay_Natureza_Jur%C3%ADdica>. Acesso em 21.10.2023 – citado também no inteiro teor do acórdão ora comentado. No mesmo sentido: Rafael Baptista Baleroni, “Aspectos econômicos e jurídicos das cláusulas de ship-or-pay e take-or-pay nos contratos de transporte e fornecimento de gás natural”, Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC, vol. 27, pp. 247-264. Rio de Janeiro: Padma, jul.-set./2006, p. 252.
Os vultuosos investimentos necessários em instalações, equipamentos e na infraestrutura de transporte e armazenamento; a baixa liquidez do gás natural; o risco de o gás natural se perder caso não consumido ou fique mal armazenado; o fato de o mercado ser mais afeito a contratos de longo prazo sujeitos a mais intercorrências etc..
Rogério S. Miranda, “Contratos da indústria de gás natural. Mitigação do risco de mercado. Financiamento através de project finance”. In: Paulo Valóis Pires (org.), Temas de direito do petróleo e do gás natural. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, pp. 269-270.
Rogério S. Miranda, “Contratos da indústria de gás natural. Mitigação do risco de mercado. Financiamento através de project finance”, cit., p. 270.
A legalidade da cláusula também foi reconhecida em: TJSP, 29ª CDPriv, AC 0050466-63.1998.8.26.0100, Rel. Des. Pereira Calças, j. 04.05.2011, v.u..
Trecho do voto da Ministra Nancy Andrighi, relatora do caso.
Na doutrina, discute-se um sem-número de possíveis naturezas jurídicas: (i) cláusula de preço pura e simples; (ii) cláusula penal; (iii) obrigação alternativa; (iv) obrigação de garantia; (v) obrigação decorrente de contrato aleatório; (vi) cláusula indenizatória etc.. Para um panorama geral, cf. Giovana Durli Torres, “A determinação da natureza jurídica da cláusula take or pay e seus efeitos no direito brasileiro”, p. 18. Disponível em: <https://www.pucrs.br/direito/wp-content/uploads/sites/11/2022/02/giovana_torres.pdf>. Acesso em 22.10.2023; Guilherme Gomes de Carvalho Macedo, A cláusula take or pay e a aplicação da teoria da onerosidade excessiva nos contratos de energia. Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Mestrado Profissional em Direito Civil Contemporâneo e Prática Jurídica da PUC-Rio, sob orientação da Professora Aline Terra, Rio de Janeiro, 2022, pp. 38-57; Ana Luiza Tesser Arguello, A cláusula penal nos contratos empresariais. Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob orientação da Professora Juliana Krueger Pela, São Paulo, 2018, pp. 56-75.
Nesse sentido: Cid Tomanik Pompeu Filho, “Redação contratual define natureza de cláusula take or pay”. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-fev-17/cid-tomanik-redacao-contratual-define-natureza-clausula-take-or-pay>. Acesso em 21.10.2023.
Trecho da ementa. Em sentido contrário, qualificando-a como cláusula penal: TJSP, 32ª CDPriv, AC 9050575-49.2006.8.26.0000, Rel. Des. Hamid Bdine, j. 06.12.2012, v.u.; TJSP, 34ª CDPri, AC 9226849-96.2005.8.26.0000, Rel. Des. Gomes Varjão, j. 10.10.2011, v.u.; TJSP, 30ª CDPri, AC 9059853-11.2005.8.26.0000, Rel. Des. Marcos Ramos, j. 14.09.2011, v.u.; TJSP, 30ª CDPri, AC 9059853-11.2005.8.26.0000, Rel. Des. Marcos Ramos, j. 14.09.2011, v.u.; TJ/SP, 28ª CDPriv, AC 0188504-06.2008.8.26.0100, Rel. Des. Celso Pimentel, j. 14.09.2010, v.u..
Na ementa, lê-se exatamente o seguinte: “O cálculo do montante devido com base na cláusula take or pay não quer dizer que não houve uma efetiva compra e venda. Na realidade, existe um contrato de compra e venda, mas, em determinada época, em razão de o consumo de produto ou serviço ter sido inferior ao mínimo disponibilizado, o preço devido foi calculado nos moldes do previsto na cláusula take or pay. Assim, é possível emitir duplicata fundada em contrato de compra e venda, ainda que o valor constante do título tenha sido calculado com base na cláusula take or pay” (STJ, 3ª T., REsp 1.984.655/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, v.u., j. 29.11.2022).
Nesse sentido: “(...) os artigos 317, 478, 479 e 480 do Código Civil devem ser interpretados em conjunto, como partes de um sistema complexo de regulação da teoria da excessiva onerosidade aplicável às relações paritárias no Direito brasileiro” (Antônio Pedro Medeiros Dias, Revisão e resolução do contrato por excessiva onerosidade. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 50).
Combatido, por exemplo, por Leonardo de Campos Melo, “Cláusula de Take or Pay: Natureza Jurídica”, cit., mas defendido por Rafael Baptista Baleroni, “Aspectos econômicos e jurídicos das cláusulas de ship-or-pay e take-or-pay nos contratos de transporte e fornecimento de gás natural”, cit., p. 255.
Fernando Augusto Werneck Ramos, “Da cláusula ‘take or pay’ nos contratos de compra e venda de gás natural”. In: Marilda Rosado (coord.), Estudos e pareceres: direito do petróleo e gás. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 202.
Nesse sentido: “Em muitos casos, de fato, se justifica a aplicação da teoria da onerosidade excessiva nos contratos com cláusula take or pay, sobretudo quando a variação excessiva decorrente de um evento previsível e alocado entre as partes é apta a ensejar um efeito extraordinário causador de desequilíbrio contratual e quando a variação (não excessiva se comparada a mercado, mas suficientemente excessiva a ponto de desequilibrar a relação contratual) decorre de evento extraordinário. Essa possibilidade, todavia, não chancela sua aplicação desproporcional e atécnica, devendo-se atentar às circunstâncias fáticas e contratuais que deram ensejo à celebração do negócio jurídico e, ainda, à variação do preço da energia ao longo de toda a relação contratual” (Guilherme Gomes de Carvalho Macedo, A cláusula take or pay e a aplicação da teoria da onerosidade excessiva nos contratos de energia, cit., p. 83).