#89. Arbitragem e responsabilidade pré-contratual
Não surpreende que a arbitragem seja locus frequente para solução de disputas contratuais: para além das vantagens estratégicas a ela inerentes, tais disputas usualmente dizem respeito a direitos patrimoniais disponíveis e a contratação prévia de convenção de arbitragem (via cláusula compromissória) é o fundamento mais comum para instauração da arbitragem. Isso não quer dizer que somente a responsabilidade contratual encontre nela espaço. O tema da coluna “Em Foco” de hoje é a arbitrabilidade de disputas pré-contratuais.1
Responsabilidade pré-contratual: direito material
Conceito compósito, como já advertia Carlos Alberto da Mota Pinto2, a responsabilidade pré-contratual abarca uma pluralidade de ilícitos que têm em comum o fato de ocorrem no curso das negociações contratuais. Sem pretensão de dar conta desta pluralidade, destacam-se três situações distintas que podem ser a ela reconduzidas:
Responsabilidade pré-contratual pela não conclusão do contrato definitivo: certamente o caso mais estudado (mas, possivelmente, não o mais frequente), a responsabilidade pré-contratual pela ruptura injustificada de tratativas já frequentou essa newsletter, na AGIRE #62. Trata-se de hipótese lesiva em que, no curso das tratativas, uma das partes cria na outra a expectativa de que o contrato virá a ser celebrado e, sem justo motivo, rompe as negociações. O ilícito, nesse caso, é qualificado, em primeiro lugar, pela criação da confiança, e complementado com sua ruptura imotivada. Daí vai que o objeto de proteção vem a ser a confiança frustrada, sem que com isso se garanta ao lesado a concretização da contratação definitiva, que não chegou a tomar forma. Não por outra razão, o dever de reparar no caso de responsabilidade por ruptura de tratativas é identificado ao interesse negativo, também chamado de interesse na confiança.
Responsabilidade pré-contratual e conclusão de contrato inválido: hipótese lesiva bastante usual (mas que não costuma ser identificada, de plano, nos limites da responsabilidade pré-contratual), a responsabilidade pela contratação inválida é tema da mais alta relevância prática. Se toda invalidade é congênita, a imputação da invalidade a um dos contratantes somente pode se dar em razão de um ato praticado na fase formativa. Ilustra a afirmação o fértil terreno do dolo invalidante (art. 145 CC3), cuja configuração pressupõe o induzimento em erro previamente à formação do contrato. Significa dizer que somente há dolo quando a invalidade for imputável a um dos contratantes, por ato próprio ou por ato de terceiro, ocorrido na fase pré-contratual. A responsabilidade é pré-contratual, portanto (e isso não significa uma definição sobre o regime a ela aplicável).
Responsabilidade pré-contratual por conclusão de contrato indesejado: igualmente frequente, mas nem sempre identificada à responsabilidade pré-contratual, a hipótese de contratação de conteúdo indesejado se diferencia das anteriores por pressupor a formação válida do contrato definitivo. Exemplifica esse grupo de casos (que nele não se esgota, porém) o dolo acidental (art. 146 CC4). Consoante definição legal, trata-se de situação em que o contrato foi validamente concluído, mas, por algum vício na origem, o foi com conteúdo diverso daquele que o contratante lesado teria querido se não houvesse sido induzido em erro pelo outro. Nos termos da legislação brasileira, o dolo acidental não é causa de invalidade, mas dele deriva o dever de “satisfação das perdas e danos”.
Responsabilidade pré-contratual: arbitragem
O caminho que pode levar cada um dos grupos de casos antes descritos até a arbitragem não é uniforme. Deixando de lado, deliberadamente, a hipótese de compromisso arbitral5, que não suscita maiores controvérsias por ocorrer após o ato lesivo, releva considerar dois possíveis caminhos fundados em cláusulas compromissórias:
Cláusula compromissória no contrato definitivo: nos casos de responsabilidade pré-contratual por conclusão de contratos inválidos ou de contratos indesejados, por definição, há contrato definitivo. Neste, por sua vez, pode haver cláusula de arbitragem. Tomado como cenário base a adoção de uma cláusula compromissória geral e ampla (isto é, que não restrinja as matérias possíveis de serem decididas em arbitragem), como sói acontecer, o caminho até a arbitragem não trará maiores dificuldades. Em relação a contratos inválidos, a autonomia da cláusula compromissória não impedirá que o Tribunal Arbitral reconheça a invalidade do pacto e que, nada obstante (respeitada a extensão particular da cláusula compromissória), julgue as consequências indenizatórias que podem derivar da responsabilidade pré-contratual. Em relação a contratos indesejados, o pacto é válido e, salvo outro motivo diverso daquele a propósito do caráter indesejado, também o será a cláusula compromissória.
Cláusula compromissória nos contratos preparatórios: maiores dificuldades podem surgir nos casos de responsabilidade pré-contratual pela não conclusão do contrato definitivo. Nestes, a despeito da inexistência do pacto definitivo, é comum que haja algum negócio jurídico a regular a fase de tratativas, no qual, por sua vez, pode existir cláusula compromissória. Exemplificam tais pactos as figuras não homogêneas dos memorandos de entendimento (MoU) e dos term sheets, em termos mais amplos, e aqueles negócios jurídicos que possuem objeto único e bem definido, como pactos de exclusividade, de não concorrência e de confidencialidade6. Nesses casos, a possibilidade de recurso à arbitragem para discutir a responsabilidade pela não formação do contrato definitivo dependerá da abrangência da cláusula compromissória. Uma redação restritiva que, por exemplo, vincule expressamente a contratação de arbitragem para solução de disputas decorrentes do “inadimplemento do objeto deste contrato” ou “da relação contratual estabelecida neste contrato” pode levar a resultados diversos da adoção de fórmulas abrangentes, como aquelas presentes nas cláusulas-modelo das principais instituições arbitrais brasileiras. Tome-se como exemplo a cláusula simples e a cláusula detalhada do CAM-CCBC que, respectivamente, fazem referência a “qualquer litígio originário ou relacionado ao presente contrato” ou “qualquer controvérsia oriunda deste contrato ou com ele relacionada”.7 O emprego da locução adverbial “ou” faz com que tais previsões abranjam disputas que gravitam o negócio jurídico no qual estão inseridas (in casu, as disputas que gravitam em torno dos pactos firmados na fase de negociações). A confirmação da jurisdição arbitral nesses casos dependerá de interpretação da cláusula. A tarefa, ex vi art. 8º da Lei de Arbitragem8, cabe ao Tribunal Arbitral, que o fará a partir de critérios próprios de interpretação da cláusula compromissória.
Encontros e desencontros: arbitrabilidade e regime de responsabilidade
Pese embora posições em sentido diverso, o entendimento majoritariamente aceito no Direito brasileiro é de que essa responsabilidade pré-contratual segue o regime extracontratual9, ainda que com notas distintivas em relação à responsabilidade aquiliana “pura”10. Note-se, então, que o fiel da balança para definir a possibilidade de solução das disputas sobre o tema por arbitragem não é, como se poderia supor à partida, o regime aplicável à responsabilidade. Em outras palavras: a arbitragem pode encontrar seu fundamento em cláusula compromissória (o que pressupõe a existência de contrato ou de negócio jurídico entre as partes) e, ao mesmo tempo, servir para discussão de responsabilidade extracontratual.
Note-se, ainda, que a remissão da responsabilidade pré-contratual ao regime de responsabilidade extracontratual não significa que ela seja qualificável apenas em ambiente de inexistência de contrato: a responsabilidade por invalidade e por contratos indesejados são provas suficientes disso. E, mesmo quando não houver o contrato definitivo (válida ou invalidamente concluído), é possível que haja algum negócio jurídico entre as partes, como aqueles que se prestam a regular as negociações ou aspectos parcelares da relação entre as partes.
Na experiência internacional, as redações do art. II(1) da Convenção de Nova Iorque11 e do art. 7ª da Lei Modelo da UNCITRAL12 deixam evidente que a arbitragem pode ir além dos pleitos contratuais. No caso da Lei Modelo, a redação do art. 1 (1) adotada em 2010 alterou a menção a “disputas em relação ao contrato” e passou a abranger “disputas entre as partes em relação a uma determinada relação jurídica, contratual ou não”13. No Brasil, por sua vez, o art. 4º da Lei de Arbitragem14 faz referência à contratação de cláusula compromissória em contrato para solução de disputas “relativamente a tal contrato”, sem que isso deva ser compreendido como uma limitação intransponível à vontade das partes.
A arbitrabilidade de disputas não contratuais com fundamento em cláusula compromissória é tema debatido no cenário internacional. Em recente artigo, Klaus Peter Berger trata da arbitrabilidade de disputas extracontratuais e, dentre os exemplos que traz, elenca o objeto desta coluna, por ele referido a partir da nomenclatura tradicional de culpa in contrahendo. Na visão do autor, a abrangência da cláusula de arbitragem para disputas não contratuais deve ser resolvida menos por recurso à interpretação textual da cláusula de arbitragem e mais por uma noção de “vinculação fática” ou “conexão fática” da disputa ao contrato15. Em outras palavras, respeitada a vontade das partes, a remissão à arbitragem será confirmada quando houver equivalência fática entre a disputa e a existência do contrato, deixando-se de fora dela aquelas disputas que possam ser julgadas independentemente do contrato ou dos deveres que dele decorrem16.
Transposta a tese por ele proposta ao Direito brasileiro, não se pode deixar de notar que, no geral, a existência de contrato ou de negócio jurídico é relevante para a discussão da responsabilidade pré-contratual. Essa constatação vem ao encontro da percepção de que o tema da coluna se encontra em uma zona cinzenta pois, se de um lado não se pode afirmar que haja inadimplemento contratual a ensejar a aplicação do regime próprio ao inadimplemento, de outro não se pode negar que as partes não estão distantes uma da outra como em uma situação de responsabilidade extracontratual “pura”. Se tal localização pode justificar a discussão sobre o regime aplicável à responsabilidade17, ela não é impedimento à confirmação da arbitrabilidade desse tipo de disputa.
Renata Steiner, FCIArb
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente e parecerista.
Conselheira do Conselho Administrativo da ARBITAC (Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial do Paraná).
Como citar: STEINER. Renata. Arbitragem e responsabilidade pré-contratual. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 89, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire89>. Acesso em DD.MM.AA.
A inspiração da coluna nasceu em discussão iniciada no Workshop “Vinculatividade Negocial em Disputas de M&A”, por ocasião do 21º Congresso de Arbitragem do CBar (Rio de Janeiro, 2022) e, mais recentemente, em entrevista para o “Momento CIArb”, promovido pelo CIArb em parceria com o Canal Arbitragem.
MOTA PINTO, Carlos Alberto. A responsabilidade pré-negocial pela não conclusão dos contratos. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Suplemento XIV, p. 157-158.
Art. 145. São os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quando este for a sua causa.
Art. 146. O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo.
Sobre compromisso arbitral, remete-se a TERRA, Aline; DELAMUTA, Maria Beatriz e STEINER, Renata C. Comentários ao art. 9ª. In: WEBER, Ana e LEITE, Fabiana. Lei de Arbitragem comentada (Lei 9.307/1996). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, pp. 145-154. Consoante ali afirmado, a propósito da exemplificação dos casos em que o compromisso arbitral se mostra fundamento da instauração da arbitragem “sua celebração pode se dar em disputas sobre con- ° da tratos que não contenham cláusula compromissória, cies que contenham cláusula compromissória vazia ou que não digam respeito a questões contratuais, como aquelas em que a relação entre as partes surge por ocorrência de ato ilícito extracontratual” (p. 145).
Vide, por todos, KONDER, Carlos Nelson. O alcance da cláusula compromissória em contratos coligados: leitura a partir da tutela da confiança. Revista de Arbitragem e Mediação. vol. 63. p. 295-331. Out-Dez. 2019 e CARMONA, Carlos Alberto Arbitragem e processo: um comentário à Lei no 9.307/96. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2009. pp. 173-175.
As figuras e os graus de vinculatividade negocial foram recentemente objeto de tratamento em trabalho acadêmico de Samanta Mitiko Mizoguti na Universidade de São Paulo, sob orientação do Professor Rodrigo Broglia Mendes e publicado no livro “Fusões e Aquisições: efeitos jurídicos das negociações”, São Paulo: Almedina, 2022.
No mesmo sentido as cláusulas padrão da CMA-CIESP/FIESP (“Qualquer controvérsia decorrente da interpretação, cumprimento ou execução do presente contrato, ou com ele relacionado, será definitivamente resolvida por arbitragem, sob administração da Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem CIESP/FIESP e de acordo com seu Regulamento de Arbitragem. O procedimento será conduzido por (um/três) árbitro(s), indicados segundo o procedimento previsto no referido Regulamento.”)
Art. 8º A cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato em que estiver inserta, de tal sorte que a nulidade deste não implica, necessariamente, a nulidade da cláusula compromissória. Parágrafo único. Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória.
Defendendo a aplicação do regime contratual, vide POPP, Carlyle. Responsabilidade civil pré-negocial: o rompimento das tratativas. 1. ed. (ano 2001), 6ª reimpressão. Curitiba: Juruá, 2011, p. 150 e GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Elementos de responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 265. Na jurisprudência, destaca-se julgamento da lavra do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, REsp 1367955/SP, Terceira Turma, julgado em 18/03/2014, DJe 24/03/2014, no qual se aplicou o marco temporal do art. 405 CC (ou seja, a citação) para contagem de juros, o que é próprio da responsabilidade contratual.
“Podemos, pois, pensar na responsabilidade extracontratual como gênero do qual são espécies (i) a responsabilidade aquiliana, ou delitual, fundada numa culpa ou delito civil; (ii) a responsabilidade objetiva extracontratual, nos casos indicados na lei, ou evidenciados, por construção jurisprudencial, na forma do parágrafo único do art. 927; e (iii) a responsabilidade pré-negocial, caracterizada pelo momento da produção do dano e pela especialidade do dever violado (infração danosa e imputável a deveres de proteção pré-negociais).” (MARTINS-COSTA, Judith. Um aspecto da obrigação de indenizar: notas para uma sistematização dos deveres pré-negociais de proteção no direito civil brasileiro. Revista dos Tribunais. vol. 867. P. 11-51. Jan. 2008. p. 17).
Artigo II. 1. Cada Estado signatário deverá reconhecer o acordo escrito pelo qual as partes se comprometem a submeter à arbitragem todas as divergências que tenham surgido ou que possam vir a surgir entre si no que diz respeito a um relacionamento jurídico definido, seja ele contratual ou não, com relação a uma matéria passível de solução mediante arbitragem. (grifou-se).
Artigo 7.° Definição e forma da convenção de arbitragem (como adotado pela Comissão na sua 39 sessão, em 2006) (1) "Convenção de arbitragem" é o acordo pelo qual as partes decidem submeter à arbitragem todos ou alguns dos litígios surgidos entre elas com respeito a uma determinada relação jurídica, contratual ou extracontratual. Uma convenção de arbitragem pode adotar a forma de uma cláusula compromissória em um contrato ou a de um acordo autônomo. (grifou-se).
Art. 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.
Sobre a alteração no art. 1(1) da Lei Modelo, remete-se a Jan Paulsson and Georgios Petrochilos, 'UNCITRAL Arbitration Rules, Section I, Article 1 [Scope of application]', in Jan Paulsson and Georgios Petrochilos , UNCITRAL Arbitration (Kluwer Law International; Kluwer Law International 2017), pp. 1 – 11.
BERGER, Klaus Peter, Contractual Arbitration Clauses and Noncontractual Claims, in Maxi Scherer (ed), Journal of International Arbitration, Kluwer Law International 2023, Volume 40. Issue 2. p. 109.
A coluna não pretende discutir a fundo a qualificação do regime, mas aponta que, sendo a responsabilidade pré-contratual um conceito compósito, a definição de um regime extracontratual em base ampla pode ser colocada à prova em algumas situações.