#73. Na pauta do STJ: o termo final da cláusula penal moratória na resolução
(e a necessária compatibilização entre a resolução e os efeitos da mora)
O caso concreto
Em 01.11.2010, autora (cessionária) e réu (cedente) celebraram Instrumento Particular de Promessa de Cessão de Direitos e Outras Avenças, pelo qual o cedente cedeu à cessionária unidade autônoma residencial em empreendimento cuja entrega estava prevista para 30.04.2014, com prazo de tolerância de 180 dias; a incorporadora figurou como interveniente anuente. O Contrato não previu cláusula resolutiva expressa em favor da cessionária, mas contemplou cláusula penal moratória para a hipótese de descumprimento do prazo ajustado para a conclusão das obras, nos seguintes termos:
“Cláusula 7.4. Findo o prazo de tolerância estipulado na cláusula 7.2 supra, sem que tenha sido expedido Certificado de Auto de Conclusão das Obras (‘Habite-se’), a CEDENTE pagará ao CESSIONÁRIO, a multa de 0,5% (meio por cento) ao mês de atraso, calculada sobre o valor efetivamente pago e quitado pelo CESSIONÁRIO, corrigidos na mesma forma deste instrumento. (...)”
Em 12.11.2015, a cessionária ajuizou ação de obrigação de fazer e reparação por danos materiais em face do cedente e da incorporadora; aduziu que o empreendimento não fora entregue na data acordada e requereu, ao que interessa a esta análise, (i) a entrega do imóvel em perfeitas condições em até 15 dias e (ii) a condenação das requeridas ao pagamento da multa prevista na cláusula 7.4 do Contrato.
Em 13.11.2019, em sentença de primeiro grau, as rés foram condenadas solidariamente ao pagamento da cláusula penal moratória, “abrangendo o período compreendido entre 28.10.2014 e a data da efetiva entrega do imóvel objeto do negócio jurídico ou a data da rescisão judicial do contrato (o que ocorrer em primeiro lugar), devendo o montante apurado ser acrescido de correção monetária pelo INPC-IBGE a partir dos vencimentos mensais, e de juros de mora à taxa de 1% ao mês a partir da citação (artigo 405, CCB/2002)”.[1]
Um parêntesis relevante: paralelamente ao procedimento em comento, em 22.08.2019, a cessionária ajuizou outra ação requerendo a resolução do contrato. Aduziu que, posto a carta de “habite-se” tenha sido apresentada em 17.12.2018, não teria havido a entrega das chaves, configurando-se o inadimplemento absoluto da prestação. A ação foi julgada procedente em 22.04.2020 e as rés foram condenadas a restituir os valores pagos pela cessionária, corrigidos desde outubro de 2014 (fim do prazo de tolerância) e acrescidos de juros de mora de 1% ao mês, desde a data da citação.[2]
De volta ao processo em análise, irresignadas, as rés apelaram da sentença, requerendo que o termo final da incidência da cláusula penal moratória fosse fixado na data da expedição do “habite-se”.
Em 14.10.2020, a 7ª Turma Cível do TJDFT decidiu que “o termo final da mora para fins de aplicação da multa por atraso prevista no instrumento de promessa de compra e venda deve corresponder à data da rescisão do contrato operada com a publicação da sentença” proferida no outro procedimento.[3]
Em 09.12.2022, as rés interpuseram recurso especial, requerendo que se considerasse como termo final da incidência da cláusula penal moratória “a data da propositura da ação de rescisão contratual”.
A decisão do STJ
No REsp nº 1.997.300/DF, a Terceira Turma, embora tenha discordado do acórdão recorrido, manteve o seu teor, a fim de não violar a regra de reformatio in pejus. Isso, porque, no seu entender, “o correto termo final da cláusula penal moratória deve[ria] ser computado a partir do trânsito em julgado da decretação da rescisão contratual”, e não da publicação da sentença resolutória (como decidiu o TJDFT) e tampouco do ajuizamento da ação de resolução (como pretendiam as rés).
Para chegar à referida conclusão, a Ministra Relatora Nancy Andrighi traçou o seguinte percurso (sem força de coisa julgada):
Por vezes, a mora se converte em inadimplemento absoluto por perda de utilidade da prestação para o credor, a autorizar a resolução do vínculo contratual, como ocorreu no caso concreto. A efetiva inutilidade da prestação deve ser controlada judicialmente. Daí a necessidade de ajuizamento de ação para a resolução de promessa de compra e venda, ainda que houvesse cláusula resolutiva expressa.[4]
“O momento do ajuizamento da ação resolutiva (...) significa tão somente o exercício de um direito subjetivo de ação que o ordenamento atribui a toda e qualquer pessoa (...). É com a ocorrência de coisa julgada material, contudo, que a definição da sentença passa a ser definitiva (...)”.[5]
Na ação de resolução contratual, “mesmo com a superveniência de sentença de procedência, o contrato de compra e venda de imóvel em debate permanecerá válido e surtindo efeitos até o trânsito em julgado, a menos que a sentença seja reformada ou invalidada”.[6]
“Destarte, nas hipóteses de atraso na entrega do imóvel alienado em que o adquirente não chegou a receber as chaves do bem porque o contrato foi rescindido, o termo final da cláusula penal moratória deverá ser o trânsito em julgado da sentença de procedência da rescisão contratual, pois representa o momento em que foi chancelada a alegada inutilidade da prestação que justifica a rescisão contratual, extinguindo definitivamente a avença celebrada entre as partes, e, por conseguinte, liberando-as de suas respectivas obrigações”.[7]
Para refletir...
Um primeiro contraponto relevante acerca da decisão em comento diz respeito à operatividade da cláusula resolutiva expressa. Embora o contrato em análise não contasse com referida cláusula, o acórdão sublinhou a necessidade de ajuizamento de ação para a resolução de promessas de compra e venda, mesmo em presença de cláusula resolutiva expressa. Conforme já se teve oportunidade de afirmar em diversas ocasiões,[8] inclusive na coluna inaugural da AGIRE, nesses casos a resolução se opera extrajudicialmente, por meio de simples notificação ao devedor,[9] como o próprio STJ passou a reconhecer mais recentemente.[10]
E assim o é porque, por meio da cláusula resolutiva expressa, as partes já especificam, “quando da celebração do contrato, as situações que configurarão inadimplemento absoluto, valorando, ex ante, a relevância de cada obrigação no concreto regulamento de interesses e estabelecendo as consequências de sua inexecução”.[11] Nesse cenário, as partes podem – e devem! – já prever em que situações o prolongamento da mora conduzirá à perda de interesse do credor na relação obrigacional, a convertê-la em inadimplemento absoluto e autorizar a resolução extrajudicial. E o juiz e o árbitro, caso chamados a apreciar a regularidade da resolução levada a cabo pelo credor, devem ser deferentes ao quanto pactuado pelas partes – sobretudo em relações paritárias –, afinal, ninguém melhor do que elas para valorar os termos em que a prestação deve ser adimplida para que seja capaz de satisfazer aos seus interesses.
Um segundo ponto a ser ponderado concerne ao momento em que se considerou resolvido o contrato por inadimplemento do promitente vendedor. De acordo com o acórdão, o contrato é válido e eficaz, e a mora na entrega da unidade produz os seus regulares efeitos até o trânsito em julgado da decisão resolutória, quando resta configurado o inadimplemento absoluto e se resolve, enfim, o contrato. O entendimento parece ir de encontro à jurisprudência consolidada do STJ, segundo a qual “em caso de rescisão de contrato de compra e venda de imóvel por culpa da promitente-vendedora, os juros de mora sobre o valor a ser restituído incidem a partir da citação”.[12]
De fato, ao determinar a incidência de juros de mora sobre os montantes a serem restituídos a partir da citação, há o reconhecimento de que a resolução já se operou, uma vez que a restituição das prestações executadas (em contratos em que isso é possível, como no caso de compromissos de compra e venda imobiliária) é efeito natural da resolução.
Em terceiro lugar, chama-se a atenção para a coincidência entre o momento em que se tem como configurado o inadimplemento absoluto e aquele em que é ultimada a resolução: será que a conversão da mora em inadimplemento absoluto por perda de utilidade da prestação sempre ocorrerá no mesmo momento em que se opera a resolução judicial? A indagação é importante porque, uma vez verificada a conversão, substitui-se o regime da mora pelo do inadimplemento absoluto.
Por fim, o quarto aspecto a destacar se refere à necessidade de compatibilizar o pagamento da cláusula penal moratória pela incorporadora em razão do atraso na entrega da unidade, com o efeito retroativo da resolução, que tem como escopo colocar as partes na situação hipotética em que estariam no presente caso não tivessem celebrado o contrato – o que designamos como retorno ao status quo ante dinâmico.[13] Afinal, o credor não pode receber, a um só tempo, verbas devidas pelo devedor pela mora na execução da prestação que lhe incumbe, bem como a restituição dos valores que ele (devedor) já pagou a título de contraprestação.
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
[1] 2ª Vara Cível de Taguatinga, Juiz de Direito Ruitemberg Nunes Pereira, processo nº 0027250-93.2015.8.07.0007, j. 13.11.2019.
[2] 1ª Vara Cível de Taguatinga, Juíza de Direito Debora Cristina Santos Calaco, processo nº 0713122-85.2019.8.07.0007, j. 22.04.2020.
[3] TJDFT, 7ª Turma Cível, Rel. Des. Fábio Eduardo Marques, AC nº 0027250-93.2015.8.07.0007, j. 14.10.2020.
[4] STJ, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, REsp 1.997.300/DF, j. 06.09.2022, §§ 5 a 12.
[5] STJ, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, REsp 1.997.300/DF, j. 06.09.2022, §§ 14 e 15.
[6] STJ, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, REsp 1.997.300/DF, j. 06.09.2022, § 23.
[7] STJ, 3ª T., Re. Min. Nancy Andrighi, REsp 1.997.300/DF, j. 06.09.2022, § 25.
[8] TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte: Fórum, 2017; TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa e resolução extrajudicial. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 2, n. 3, jul.-set./2013.
[9] Para a possibilidade de a resolução se operar extrajudicialmente mesmo quando não haja cláusula resolutiva expressa, confira-se a AGIRE #42, de Giovanni Ettore Nanni.
[10] STJ, 4ª T., Rel. Min. Marco Buzzi, REsp nº 1.789.863/MS, j. 10.08.2021; STJ, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, REsp nº 1966946/MS, j. 26.04.2022.
[11] TERRA, Aline de Miranda Valverde; NANNI, Giovanni Ettore. A cláusula resolutiva expressa como instrumento privilegiado de gestão de riscos contratuais. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 31, n. 1, pp. 141-142.
[12] STJ, 4ª T., Rel. Min. Marco Buzzi, REsp nº 1935521/RJ, j. 22.02.2022.
[13] Como já se afirmou em outra sede, “o pretendido retorno ao status quo ante não é estático, mas dinâmico: procura-se colocar o credor na situação econômico-jurídica em que estaria, no presente, caso o contrato jamais tivesse sido celebrado. Vale dizer, não se quer simplesmente devolver o credor para a situação em que estava antes de celebrar o contrato, mas conduzi-lo à posição hipotética em que poderia estar caso não tivesse celebrado o indigitado contrato, e houvesse ingressado, por exemplo, em outra relação contratual que se lhe apresentava, ou mesmo dado continuidade a negócio que já desenvolvia” (TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Resolução por inadimplemento: o retorno ao status quo ante e a coerente indenização pelo interesse negativo. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 9, n. 1, 2020, p. 9).