#101. Na pauta do STJ: sub-rogação da seguradora na cláusula compromissória
No âmbito dos seguros de danos,1 verificado o sinistro e paga a indenização, a seguradora se sub-roga “nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano”, nos termos do art. 786 do Código Civil.2 Cuida-se de hipótese particular de sub-rogação ope legis, que se opera automaticamente mediante a verificação do pagamento, e cujos efeitos estão em linha com aqueles definidos pela regra geral constante do art. 349, segundo o qual “a sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores”.
A aparente simplicidade da previsão legal oculta complexas questões relativas à extensão em que se opera a sub-rogação, a atrair a atenção da doutrina especializada (vejam-se, por exemplo, AGIRE #31 e AGIRE #54). Questão particularmente tormentosa diz respeito aos efeitos da sub-rogação sobre eventual cláusula compromissória constante do contrato havido entre o segurado e autor do dano: estaria ela abrangida pela sub-rogação, vinculando a seguradora ao quanto nela disposto? A discussão esteve na pauta do STJ ao longo do ano de 2023, e duas decisões merecem especial atenção: o REsp. nº 1.988.894/SP (4ª Turma) e o REsp. nº 2.074.780/PR (3ª Turma).
REsp. nº 1.988.894/SP3
A segurada, compradora de mercadorias, celebrara contrato de transporte marítimo internacional do qual constava cláusula compromissória. Em razão da má fixação da carga no navio, a mercadoria se desprendeu durante o transporte e sofreu diversos danos decorrentes de choques e colisões. Por força do contrato de seguro garantia para cobertura dos riscos envolvidos no transporte, a seguradora indenizou a segurada e ajuizou ação em face do agente logístico, do transportador marítimo e do armador-proprietário do navio para reaver os valores desembolsados.
A sentença prolatada em 2018 julgou procedente o pedido.4 Em apelação, todavia, já em 2020, a 12ª Câmara de Direito Privado do TJSP extinguiu o processo sem julgamento do mérito, tendo em vista a existência de cláusula compromissória.5 Nos termos do voto do relator, a seguradora, ao pagar a indenização, assume a posição jurídica do segurado, e passa a ser vista como se contratante do transporte marítimo fosse. Afirmou-se, ainda, que a inserção de cláusula compromissória em conhecimento de transporte marítimo internacional é regra, inexistindo qualquer surpresa para a seguradora, que tinha ou deveria ter pleno conhecimento da sua existência no momento da emissão da apólice de seguro.6
A seguradora interpôs recurso especial, aduzindo, ao que interessa a estes comentários, que não se vincula à cláusula compromissória, (i) seja porque não é parte do contrato de transporte, não tendo, portanto, manifestado seu consentimento em se submeter à arbitragem nele prevista, (ii) seja porque a sub-rogação legal só transmite direitos materiais, não já direitos processuais,7 a exemplo não só da cláusula de eleição de foro, mas também da cláusula compromissória. Em 09.05.2023, a Quarta Turma do STJ reconheceu, por unanimidade, a competência do juízo arbitral.
A Relatora, Ministra Maria Isabel Gallotti, aduziu, em primeiro lugar, que “a submissão de determinado conflito à jurisdição arbitral [deve] ser fruto da autonomia das partes, nos termos do artigo 3° da Lei n° 9.307/96”. Na sequência, destacou o disposto no § 2º do art. 786 do Código Civil, segundo o qual “[é] ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo”; a seu juízo, referida disposição se refere “a atos praticados posteriormente à celebração do contrato de seguro e/ou sem o conhecimento da seguradora, justamente em virtude da exigência legal de ciência prévia para se estipular os riscos predeterminados garantidos”. Reconheceu, ainda, que a sub-rogação prevista no art. 786 é “instituto de natureza mista, material e processual, dado que são transferidas também ‘as ações que competiriam ao segurado’”.
À luz de referidas premissas, entendeu a Ministra que, embora não se possa estabelecer a vinculação da seguradora à cláusula arbitral como efeito automático e necessário da sub-rogação, “tendo sido submetido o contrato previamente à seguradora, a fim de que analisasse os riscos provenientes do contrato garantido, dentre os quais foi ou deveria ter sido considerada a cláusula compromissória, inafastável o entendimento de que tal cláusula deve ser considerada como um dos elementos essenciais do interesse a ser garantido e do risco predeterminado (arts. 757, caput, e 759 do CC)”.8 Ao fim, restou decidido que
“a ciência prévia da seguradora a respeito de sua existência [da cláusula compromissória] no contrato objeto de seguro garantia resulta na submissão à jurisdição arbitral”.
REsp. nº 2.074.780/PR9
A segunda decisão objeto de análise se refere igualmente à hipótese em que a segurada celebrara contrato de transporte marítimo internacional do qual também constava cláusula compromissória. Quando do desembarque da mercadoria no porto de destino, descarregou-se quantidade inferior à embarcada. Com base em contrato de seguro na modalidade de Transporte Internacional, a seguradora indenizou a segurada pela diferença apurada e ajuizou ação em face da proprietária e da armadora do navio a fim de recuperar a quantia despendida com a indenização.
Em primeiro grau, as rés alegaram incompetência do Juízo estatal em razão da cláusula compromissória constante do contrato de transporte, à qual a seguradora teria se sub-rogado ao pagar a indenização à segurada. Decisão interlocutória rejeitou a preliminar, ao argumento de que “a seguradora não anuiu com o contrato e com a cláusula compromissória, por conseguinte não se aplica à autora a referida disposição, uma vez que exigiria seu consentimento expresso”, e afastou a sub-rogação legal.10
As rés interpuseram agravo de instrumento, que foi desprovido, pelo que apresentaram recurso especial, alegando, em síntese, que: (i) “a cláusula compromissória não deve ser considerada personalíssima, tendo em vista que a sua adequada execução independe de qualquer característica peculiar dos contratantes”; (ii) “[a]inda que se argumente que a cláusula compromissória teria ‘natureza processual’, o que impediria que a recorrida viesse a ser alcançada por sua eficácia vinculante, uma vez que a sub-rogação abrangeria apenas as características materiais do crédito, a restrição da eficácia da sub-rogação aos aspectos de direito material violaria frontalmente a literalidade dos arts. 349 e 786 do Código Civil, que expressamente determinam a transmissão das ‘ações’ do titular primitivo ao novo titular do crédito; e (iii) “a recorrida, no momento da formação do contrato de seguro ao se propor a garantir a obrigação do contrato principal, tem ciência, ou deveria ter ciência — por força do princípio da boa-fé e pelos deveres acessórios de informação e revelação — de que naquele contrato as partes inseriram cláusula compromissória, conforme o art. 765 do Código Civi”, pelo que o risco da existência da cláusula compromissória integra “a álea ínsita à relação securitária”.
A Terceira Turma deu provimento ao recurso especial para reformar o acórdão recorrido e extinguir o processo sem julgamento do mérito. Nos termos do voto da Relatora, Ministra Nancy Andrighi, seguido à unanimidade:
“a cláusula compromissória, espécie do gênero convenção de arbitragem, pressupõe a voluntariedade das partes contratantes à renúncia à jurisdição estatal. Porém, uma vez celebrada de forma válida, integra o patrimônio das partes, sendo possível sua transmissão em determinadas circunstâncias”;
“exceções à sub-rogação se encontram nas cláusulas personalíssimas do credor e naquelas eminentemente processuais. A cláusula compromissória não é condição personalíssima de uma dada relação de jurídica. Ao contrário, uma vez celebrada, seus termos são genéricos e comuns a todos os contratantes, independentemente da qualidade da parte, podendo ser firmada por todas as pessoas capazes, desde que o direito seja disponível”;
“o compromisso arbitral é um ato jurídico de natureza híbrida, ‘na medida em que se reveste, a um só tempo, das características de obrigação contratual, representada por um compromisso livremente assumido pelas partes contratantes, e do elemento jurisdicional, consistente na eleição de um árbitro, juiz de fato e de direito, cuja decisão irá produzir os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário’ (REsp 606.345/RS, Segunda Turma, DJe 8/6/2007)”.
Ao analisar o caso concreto, afirmou a Ministra Relatora que, nos termos apresentados, embora “a seguradora não tenha firmado a cláusula compromissória, pois não era parte no contrato de transporte marítimo (e-STJ fls. 159-162), sub-rogou-se também na cláusula arbitral, que estava presente no contrato garantido e que foi – ou deveria ter sido – prevista como álea ínsita à relação securitária”. Restando, portanto, “incontroversa a existência de cláusula compromissória no contrato de transporte garantido” e, consequentemente, a sub-rogação da seguradora, reconheceu-se a incompetência do juízo estatal para examinar a ação em face das recorrentes.
O dito e o não dito: conhecimento efetivo ou presumido acerca da existência da cláusula compromissória
Posto os acórdãos em comento admitam a sub-rogação da seguradora na cláusula compromissória, ambos versam sobre situações em que a cláusula constava do contrato firmado entre o segurado e o causador do dano e, pela espécie de seguro celebrado, era possível afirmar que a seguradora conhecia ou deveria conhecer a sua existência. As decisões consideraram que o contrato de transporte e suas previsões, tendo sido submetidos à seguradora, comporiam a álea do contrato de seguro, com reflexos, inclusive, no seu valor.
Em certa medida, significa que se entendeu que houve consenso, ainda que tácito, em relação à cláusula compromissória, o que não é o mesmo de se afirmar que ela compõe o conjunto que é transmitido por sub-rogação, de forma automática.
As decisões não trataram, portanto, de situações em que não houve o conhecimento efetivo ou presumido por parte da seguradora acerca da existência de cláusula compromissória.
Obiter dictum: qualificação do contrato como de adesão
Em ambos os casos, as seguradoras argumentam que o contrato de transporte marítimo teria sido celebrado por adesão, razão pela qual a cláusula compromissória seria ineficaz não apenas em relação a si, mas em relação ao próprio segurado, por força do art. 4º, § 2º, da Lei de Arbitragem, segundo o qual “[n]os contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula”.
O tema não foi enfrentado no REsp. nº 2.074.780/PR, razão pela qual a seguradora interpôs embargos de divergência, alegando que o acórdão divergiria, em relação à mesma tese jurídica, de outras decisões proferidas pela Quarta Turma (a exemplo do AgInt no AgInt no REsp. nº 1431391/SP). Até a publicação desta coluna, os embargos de divergência estavam pendentes de julgamento.11
Já no REsp. nº 1.988.894/SP, qualificou-se o contrato celebrado como paritário. Para tanto, enfrentaram-se as características do contrato de adesão. Digno de nota é o trecho que reconhece que “a circunstância de o contrato ser materializado por um formulário e a existência de cláusulas padronizadas não implica a necessária conclusão de se tratar de contrato de adesão. Para tanto, cumpre esteja presente a característica de contratualidade meramente formal, vale dizer, que a parte não responsável pela prévia determinação uniforme do conteúdo tenha meramente aderido ao instrumento, sem aceitar efetivamente as suas cláusulas”.
Com efeito, como já se afirmou em Parecer Jurídico elaborado a pedido do Comitê Brasileiro de Arbitragem – CBAr sobre cláusula compromissória em contratos de franquia (que pode ser acessado aqui):12
“não obstante o contrato seja elaborado exclusivamente por uma das partes, se a contraparte tem o poder de alterá-lo, mas não o faz, assinando-o nos exatos termos em que o recebeu, de contrato de adesão não se trata, e sim de contrato paritário. De fato, inexistindo rigidez do conteúdo predeterminado por uma das partes, não há que se cogitar de contrato de adesão, pelo que se afastam as regras legais protetivas do aderente, notadamente os arts. 42313 e 42414 do Código Civil (CC), e o art. 4º, § 2º da Lei de Arbitragem. Em casos como esse, pode-se atrair, quando muito, o disposto no art. 113, § 1º, IV, CC15”.
Aline de Miranda Valverde Terra
Mestre e Doutora em Direito Civil pela UERJ. Master of Laws em International Dispute Resolution pela Queen Mary University of London.
Professora de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
Árbitra e Parecerista.
Como citar: TERRA, Aline de Miranda Valverde. Na pauta do STJ: sub-rogação da seguradora na cláusula compromissória. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 101, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire101>. Acesso em DD.MM.AAAA.
A sub-rogação é vedada no âmbito dos seguros de pessoas, como determina o art. 800, CC: “Nos seguros de pessoas, o segurador não pode sub-rogar-se nos direitos e ações do segurado, ou do beneficiário, contra o causador do sinistro.”
“Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.”
4ª Vara Cível da Comarca de Santos, Juiz Frederico dos Santos Messias, Proc. nº 1011916-50.2018.8.26.0562, j. 20.10.2018.
O argumento é apresentado pela primeira vez em apelação pelo transportador marítimo e pelo armador-proprietário, que não haviam sido citados. O acórdão reconheceu a nulidade da citação e a incompetência do juízo, anulando a sentença em relação a ambos e extinguindo o processo sem julgamento de mérito.
TJSP, 12ª CDP, Rel. Des. Tasso Duarte de Melo, AC nº 1011916-50.2018.8.26.0562, j. 30.09.2020.
O STJ já decidiu que "o instituto da sub-rogação transmite apenas a titularidade do direito material, isto é, a qualidade de credor da dívida, de modo que a cláusula de eleição de foro firmada apenas pela autora do dano e o segurado (credor originário) não é oponível à seguradora sub-rogada” (STJ, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, Resp. nº 1.962.113/RJ, j. 22.03.2022, v.u.).
“Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.”
“Art. 759. A emissão da apólice deverá ser precedida de proposta escrita com a declaração dos elementos essenciais do interesse a ser garantido e do risco.”
1ª Vara Cível da Comarca de Paranaguá, Juíza Gisele Lara Ribeiro, Proc. nº 0019091-61.2020.8.16.0129, j. 04.09.2021.
Afirma a seguradora que decisão também iria de encontro com o quanto decidido pela própria 3ª Turma no REsp. nº 2.058.388/SP.
“Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.”
“Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.”
“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. § 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável.”