#108. Cláusulas resolutivas de “estilo”
O direito à resolução nasce diante de um descumprimento contratual qualificado, referido pela doutrina sob diferentes nomenclaturas: inadimplemento absoluto, definitivo, irremediável ou resolutivo.1 A tarefa de definição do que venha a ser tal inadimplemento pode ser feita in abstracto, a partir de critérios gerais já muito bem explorados pela doutrina especializada2, ou in concreto, quando, no exercício da autonomia privada, as partes contratam cláusula resolutiva expressa (sobre ela, remete-se à AGIRE #1).
Cláusulas resolutivas e suas espécies
O art. 474 do Código Civil faz referência a duas espécies de cláusulas resolutivas, a expressa e a tácita, diferenciando-as pela forma de operacionalização (“pleno direito” vs. “interpelação judicial”). Ali, entretanto, o legislador não definiu o conteúdo típico de uma cláusula resolutiva, função que tem sido realizada pela doutrina que, afinal, é mesmo a sede própria à boa elucidação de conceitos jurídicos:
Cláusula resolutiva expressa: a cláusula resolutiva expressa é a “convenção por meio da qual os contraentes conferem entre si o direito de romper a relação contratual em caso de suceder fato de incumprimento por eles, como tal, previsto”.3 Como elemento do tipo, é recorrente na doutrina a referência ao chamado requisito de especificidade. Por ele, entende-se a “a exigência de menção expressa à(s) obrigação(ões) cujo inadimplemento poderá ensejar a resolução da relação obrigacional”. Assim, a cláusula resolutiva expressa “deve indicar pontualmente a(s) obrigação(ões) cujo descumprimento autorizará sua atuação, a refletir de maneira inequívoca os riscos objeto de gestão”.4 Neste ponto particular, a doutrina nacional é profundamente influenciada pelo Direito italiano, no qual há regra legal específica a propósito da necessidade de que a cláusula resolutiva expressa observe requisito de especificidade (art. 1.456 do Código Civil italiano5).
Na legislação extravagante, encontram-se regras que fixam o conteúdo mínimo da cláusula resolutiva expressa em alguns contratos, por exemplo: (a) de contratos garantidos por alienação fiduciária em garantia regidos pela Lei 9.514/1997 que, por força do disposto no art. 24, VII,6 devem prever expressamente os procedimentos de cobrança e de consolidação da propriedade; (b) de contratos de compra e venda e de compromisso de compra e venda de imóveis incorporados regidos pela Lei 4.591/19647, que, por força do disposto no art. 63, podem conter cláusula resolutiva desde que respeitadas as exigências ali dispostas quanto ao seu conteúdo mínimo (sobre o tema, remete-se à AGIRE #104) e (c) de contratos de seguro de danos que, por força da Circular 621/2021 da SUSEP, 8devem conter regra específica sobre o procedimento de resolução, especialmente sobre a comunicação prévia do segurado antes do cancelamento.
Cláusula resolutiva tácita: por outro lado, a cláusula resolutiva tácita é regra supletiva que permite a utilização do remédio resolutivo mesmo quando ausente previsão contratual específica neste sentido. Como alerta Aline Terra, a despeito da referência a ela como “cláusula”, não se trata propriamente de cláusula contratual, mas de regra legal.9
À luz desta distinção, como haveria de ser qualificada uma cláusula contratual que, ainda que denominada pelos contratantes de cláusula resolutiva, empregue redação genérica e não estabeleça, de forma precisa, quais as obrigações contratuais cujo descumprimento abrirá espaço para a resolução contratual?
Nestes casos, está-se no campo do que a doutrina denomina de cláusulas resolutivas “de estilo”, tema da coluna “Em foco” de hoje.
Cláusulas resolutivas “de estilo”
Expressão não legislada, cláusulas resolutivas “de estilo” empregam formulações genéricas em que os contratantes afirmam a possibilidade de extinção do contrato diante do descumprimento de obrigações pactuadas sem, contudo, individualizar de forma precisa aquelas que levam ao inadimplemento resolutivo.10 Frequentes na prática, podem ser exemplificadas com as seguintes redações: “qualquer uma das partes poderá resolver o presente contrato em caso de violação de quaisquer de seus termos”11 e “o descumprimento de qualquer das obrigações pactuadas no contrato ensejará a extinção da relação jurídica”.12
Em comum, tais redações reproduzem, com alguma variação de linguagem, o conteúdo do art. 475 do Código Civil, o qual dispõe, também de maneira vaga – outrora, acertadamente, rotulada como “lacônica”13 – que a parte lesada pelo inadimplemento tem o direito a exigir a resolução do contrato.
Na doutrina brasileira que já se dedicou ao tema, é entendimento unânime que uma cláusula de estilo não pode ser qualificada como verdadeira cláusula resolutiva expressa. De modo geral, a conclusão vem fundada em dois argumentos: (i) o primeiro, de que a cláusula “de estilo” não preenche o suporte fático da cláusula resolutiva expressa, por falta de especificidade e (ii) o segundo, de que é cláusula inserida de forma irrefletida pelas partes, com o propósito de apenas reproduzir o regime legal, o qual já permite a resolução em caso de inadimplemento (art. 475 do Código Civil).
Na prática, este entendimento faz com que a cláusula resolutiva “de estilo” tenha sua disciplina reconduzida ao regime da cláusula resolutiva tácita. E, como se sabe, é entendimento majoritário da doutrina brasileira que a cláusula resolutiva tácita tem sua eficácia subordinada à prévia manifestação judicial ou arbitral. A temática foi discutida por Giovanni Nanni, crítico a esse entendimento, na AGIRE #42. Admitida a premissa, a contratação de cláusula de estilo não levaria à possibilidade de extinção extrajudicial.
As “falsas” cláusulas resolutivas “de estilo”
Em texto recente, escrito em coautoria com Maria Beatriz Rizzo Delamuta14, sugerimos a possibilidade de que, a despeito da redação genérica, uma cláusula resolutiva que se mostre, aprioristicamente, como “de estilo” possa ser qualificada como cláusula resolutiva expressa e justificar a extinção extrajudicial. Assim o fizemos por considerar que o caráter genérico da previsão pode ser complementado por elementos internos ou externos ao contrato. A título de provocação ao debate, e abertas às críticas que certamente virão, fizemos as seguintes reflexões, aqui reproduzidas de forma resumida:
Cláusulas que podem ser complementadas por elementos externos: cláusulas contratuais genéricas podem ser complementadas por disposições legais ou regras externas ao contrato e que especifiquem (i) a obrigação cujo cumprimento leva à extinção do contrato (o que pode estar presente em previsão contratual diversa da cláusula resolutiva) e/ou (ii) o mecanismo procedimental para a resolução extrajudicial. O exemplo dos contratos de compromisso de compra e venda de imóveis loteados regido pela Lei 6.766/1965 serve bem para ilustrar este grupo de casos, pois não há dúvida de que o inadimplemento do preço pelo promitente comprador pode gerar o direito à resolução. Sob outra óptica, a temática foi tratada na AGIRE #104.
Cláusulas que prevejam período contratual de graça: o segundo grupo de casos é composto por cláusulas contratuais genéricas, mas que prevejam a concessão de período de graça para cura do inadimplemento, findo o qual o contrato pode ser resolvido. Como a concessão de um período de graça (Nachfrist) não é a regra no Direito brasileiro – a despeito da recente inclusão operada pela Lei 14.833/2024 no art. 499 do CPC15, cuja redação, em primeira leitura, sugere a criação de uma Nachfrist à brasileira e gera muitas dúvidas, a merecer tratamento apartado –, a previsão de um tal mecanismo se afasta da mera reprodução do art. 475 CC, nada tendo “de estilo”. Além disso, a concessão de prazo suplementar permite que a parte lesada possa qualificar o inadimplemento como resolutivo, o que fará em observância ao procedimento estabelecido.
Contratos que permitam, sem maior complexidade, compreender o conteúdo do inadimplemento resolutivo: por fim, pode ser possível extrair, via interpretação, com recurso a outros elementos internos ao contrato ou mesmo à luz do comportamento das partes, o que se qualifica como inadimplemento resolutivo diante de específico programa contratual. A possibilidade é reconhecida por Aline Terra e Giovanni Nanni, por exemplo.16 É o que se passa, por exemplo, em negócio jurídico no qual uma única obrigação principal é pactuada, ao lado de outras apenas acessórias. Nestes casos, a ausência de reprodução, na cláusula resolutiva, da única obrigação contratual ajustada não parece ser motivo bastante para negar a sua eficácia extrajudicial: a gravidade do inadimplemento é evidenciada “prima facie”.
Renata Steiner, FCIArb.
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente e parecerista.
Conselheira do Conselho Administrativo da ARBITAC (Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial do Paraná).
Como citar: STEINER, Renata. Cláusulas resolutivas de “estilo”. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 108, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire108>. Acesso em DD.MM.AA.
Empregando a expressão “inadimplemento resolutório”, que numa primeira análise se considera o mais adequado, vide OLIVEIRA, Ana Perestrelo; OLIVEIRA, Madalena Perestrelo. Incumprimento resolutório: uma introdução. Coimbra: Almedina, 2019.
Vide, por todos, TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual. Requisitos e efeitos. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 479.
TERRA, Aline de Miranda Valverde; NANNI, Giovanni Ettore. A cláusula resolutiva expressa como instrumento privilegiado de gestão de riscos contratuais. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 31, n. 1, jan./ mar. 2022, pp. 145/146. No mesmo sentido, “a cláusula deve referir com precisão qual a prestação cujo descumprimento resolverá o contrato, a natureza desse descumprimento e seu efeito” (AGUIAR JR., Ruy Rosado de. Da extinção do contrato: arts. 472 a 480. In: Teixeira, Sálvio de Figueiredo (coord.). Comentários ao novo Código Civil. vol. 6. t. II. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 400).
“Art. 1456. Clausola risolutiva espressa. I contraenti possono convenire espressamente che il contratto si risolva nel caso che una determinata obbligazione non sia adempiuta secondo le modalità stabilite. In questo caso, la risoluzione si verifica di diritto quando la parte interessata dichiara all'altra che intende valersi della clausola risolutiva.” Também exigindo a especificação, com redação conferida pela Reforma de 2016, o Código Civil francês: “Art. 1225. La clause résolutoire précise les engagements dont l'inexécution entraînera la résolution du contrat. (...)”.
Art. 24. O contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá: (...) VII - a cláusula que disponha sobre os procedimentos de que tratam os arts. 26-A, 27 e 27-A desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 14.711, de 2023).
Art. 63. É lícito estipular no contrato, sem prejuízo de outras sanções, que a falta de pagamento, por parte do adquirente ou contratante, de 3 prestações do preço da construção, quer estabelecidas inicialmente, quer alteradas ou criadas posteriormente, quando fôr o caso, depois de prévia notificação com o prazo de 10 dias para purgação da mora, implique na rescisão do contrato, conforme nêle se fixar, ou que, na falta de pagamento, pelo débito respondem os direitos à respectiva fração ideal de terreno e à parte construída adicionada, na forma abaixo estabelecida, se outra forma não fixar o contrato.
Art. 33. As condições contratuais deverão dispor sobre as consequências da falta de pagamento do prêmio e sobre a comunicação prévia ao segurado, pela sociedade seguradora, antes de eventual cancelamento do seguro.
TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 58.
As cláusulas resolutivas “de estilo” são tratadas, dentre outros, nos seguintes textos, citados em ordem alfabética: BIAZI, João Pedro de Oliveira de. A cláusula resolutiva ‘de estilo’. In: Revista Brasileira de Direito Contratual, v. 7, 2021, pp. 86-92; CASTRO NEVES, José Roberto. As “imperfeitas” cláusulas resolutivas. In: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; TERRA, Aline de Miranda Valverde (coords.). Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios. Rio de Janeiro: Processo, 2020, p. 298; NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual. Requisitos e efeitos. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, pp. 484-487; TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte: Fórum, 2017, pp. 81-82.
BIAZI, João Pedro de Oliveira de. A cláusula resolutiva ‘de estilo’. In: Revista Brasileira de Direito Contratual, v. 7, 2021, p. 92.
DELAMUTA, Maria Beatriz Rizzo. Convenção de Viena e Resolução Contratual. São Paulo: Almedina, 2022, p. 259.
SCHREIBER, Anderson. A tríplice transformação do adimplemento. Adimplemento substancial. Inadimplemento antecipado e outras figuras. Disponível em: « http://www.andersonschreiber.com.br/downloads/A_Triplice_Transformacao_do_Adimplemento.pdf» acesso em 15.12.2015.
STEINER, Renata e DELAMUTA, Maria Beatriz Rizzo. Cláusula resolutiva “de estilo”: anatomia, efeitos e análise crítica. In: ADAMEK, Marcelo; MARINO, Francisco e SILVA FILHO, Osny. (Orgs.). Cláusulas Contratuais. São Paulo: Almedina, no prelo.
CPC, Art. 499. A obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente. Parágrafo único. Nas hipóteses de responsabilidade contratual previstas nos arts. 441, 618 e 757 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e de responsabilidade subsidiária e solidária, se requerida a conversão da obrigação em perdas e danos, o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela específica. (Incluído pela Lei nº 14.833, de 2024)
TERRA, Aline de Miranda Valverde; NANNI, Giovanni Ettore. A cláusula resolutiva expressa como instrumento privilegiado de gestão de riscos contratuais. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 31, n. 1, p. 135-165, jan./mar. 2022, p. 146.