#109. Prescrição e adjudicação compulsória: como superar o aparente dilema?
Por André Abelha
A AGIRE#94 brindou o leitor com interessante texto de Renata Steiner sobre a (im)possibilidade de cobrança extrajudicial do débito em caso de reconhecimento da prescrição, mostrando que o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) ainda não conseguiu pacificar o entendimento sobre o tema.
Como nada é tão ruim que não possa piorar, a celeuma quanto às consequências da prescrição sobre o crédito e o débito vai além da cobrança, e atinge outro assunto de grande relevância: o promitente comprador de um imóvel cujo saldo do preço está prescrito tem direito a exigir do promitente vendedor a celebração da compra e venda, com adjudicação compulsória em caso de recusa ou inércia?
A discussão não é nova, mas ganhou os holofotes com a edição da Lei 14.382/2022, que inseriu o art. 216-B na Lei 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos), para prever que “Sem prejuízo da via jurisdicional, a adjudicação compulsória de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão poderá ser efetivada extrajudicialmente no serviço de registro de imóveis da situação do imóvel”. De acordo com o parágrafo primeiro do referido artigo, o pedido deve ser instruído, entre outros, com “a prova do pagamento do respectivo preço”.
Recentemente, a Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (“CNJ”) editou o Provimento 150, de 11/09/2023, que altera o Código Nacional de Normas – Foro Extrajudicial (inserção dos artigos 440-A a 440-AL), e regula em nível nacional o procedimento extrajudicial da adjudicação compulsória. O art. 440-G, III, exige prova “do adimplemento integral do preço”, e seu parágrafo 6º estabelece os fatos e documentos que podem servir de “prova de quitação”.1 A referência à “quitação” ou “pagamento do preço” como requisito para a adjudicação compulsória extrajudicial já constava dos códigos de normas de diversas Unidades da Federação.2
Mesmo quando há prescrição do saldo do preço do imóvel, o STJ, diante da ausência de efetiva quitação, rejeita o pedido de adjudicação compulsória formulado pelo adquirente, por considerar que:
(i) “o direito de obter a escritura definitiva do imóvel somente pode ser atingido pela prescrição aquisitiva decorrente de eventual ação de usucapião intentada por terceiro”,
(ii) não há direito à “outorga de escritura pública de imóvel mediante ação de adjudicação compulsória quando não provada a quitação integral do preço ajustado, sendo irrelevante o fato de o débito já se encontrar prescrito”, e
(iii) "a quitação do preço do bem imóvel pelo comprador constitui pressuposto para postular sua adjudicação compulsória, consoante o disposto no art. 1.418 do Código Civil de 2002".3
Diante desse quadro aparentemente consolidado, cabe a pergunta: esta é, efetivamente, a melhor solução que se pode extrair das regras hoje existentes no sistema?
Devemos nos conformar com este limbo jurídico, em que nem o adquirente pode exigir a escritura, pela falta de quitação, nem o alienante pode resolver o contrato, em razão da prescrição?4
Não se discute que a prescrição fulmina a pretensão, mas não o próprio crédito, que segue existindo, como obrigação natural, inexigível. Esta é a premissa óbvia, da qual partimos, e que não responde à questão principal: o promitente vendedor, cujo crédito é inexigível, mas ainda existente, tem a exceção de contrato não cumprido, a despeito da prescrição?
Para João Pedro Biazi, a resposta é positiva: apesar da prescrição, o alienante pode invocar a falta de quitação do preço, e recusar-se a assinar o contrato final, pois “a exceção de contrato não cumprido é imprescritível – simplesmente porque ela não é uma pretensão, mas sim um contradireito, que notadamente não se sujeita aos efeitos da prescrição” (AGIRE#99). O autor está em ótima companhia:
Pontes de Miranda, ainda na vigência do Código Civil de 1916, já entendia que “a exceptio non adimpleti contractus não se extingue com a prescrição da pretensão”.5 Porém, algo mudou desde Pontes de Miranda.
O atual Código Civil (CC/2002), inovando em relação ao anterior, trouxe uma regra que ilumina a discussão, e que parece ainda não ter sido levada em conta pela jurisprudência do STJ.
De acordo com o art. 190, “A exceção prescreve no mesmo prazo em que a pretensão”. Em outras palavras, a prescrição não incide apenas sobre a pretensão; ela também afeta a exceção.6
A exceção própria é arguível pelo devedor como defesa, na ação em que o credor exige o crédito prescrito, sendo uma arma do devedor não sujeita a prescrição, e invocável a qualquer tempo. A exceção imprópria, porém, é invocada em ação autônoma.7 O art. 190 se dirige a esta.
Este é, inclusive, o entendimento revelado pelo Enunciado 415 do Conselho da Justiça Federal (CJF), aprovado na V Jornada de Direito Civil: “O art. 190 do Código Civil refere-se apenas às exceções impróprias (dependentes/não autônomas). As exceções propriamente ditas (independentes/autônomas) são imprescritíveis”.
Ora, o que não prescreve, portanto, é a exceção do promitente comprador, caso o alienante exija o pagamento do saldo do preço imóvel já prescrito. A exceção que o promitente vendedor teria contra o adquirente, em demanda no qual este exige a celebração do contrato definitivo, sujeita-se ao mesmo prazo prescricional do crédito. Bloqueada a pretensão de exigir o saldo do preço, está igualmente bloqueada a exceção quanto à conclusão do contrato definitivo.
Ou seja, o adquirente não pode exigir a escritura do promitente vendedor antes de cumprir a sua obrigação de pagar o preço do imóvel... salvo se a exceção do alienante estiver prescrita! Neste caso, o promitente comprador tem direito à escritura definitiva, ou à adjudicação, embora a dívida siga existindo. Não há contradição.
O Código de Normas da CGJ/RJ traz um alento. O §2º do art 1.257 estabelece que a “prova de quitação poderá ser substituída por certidão forense de inexistência de ação de cobrança ou de rescisão contratual, bastando esta última se já decorrido o prazo de prescrição da pretensão ao recebimento das prestações”. Embora não seja uma solução técnica, eis que a pretensão não implica quitação, a razão por trás dela está correta, por fazer uma interpretação sistemática com o art. 190 do Código Civil.
Portanto, havendo prescrição, o promitente comprador tem direito ao contrato definitivo e, em caso de omissão ou recusa, à adjudicação compulsória, pois o promitente vendedor, titular de crédito decorrente de obrigação meramente natural, não pode mais arguir a exceção de contrato não cumprido, fulminada pelo decurso do tempo. Esta é minha singela e quase solitária opinião, descompassada, reconheço, da jurisprudência do STJ.
Afinal, o texto é o ponto de partida, mas não necessariamente a reta de chegada. A interpretação literal, como técnica hermenêutica, deve ser realizada em conjunto com outras, entre elas a interpretação sistemática.
Por assim dizer, os artigos 463, 478 e 1.418 do Código Civil, bem como o art. 216-B da Lei 6.015/73 e o art. 440-G, III do Provimento CNJ 150, devem ser interpretados em conjunto com o art. 190 do Código Civil. Se a quitação é a regra geral, a prescrição, que atinge não só a pretensão, mas também a exceção do promitente vendedor, deve abrir as portas para a adjudicação compulsória, judicial ou extrajudicial. Quem sabe um dia.
André Abelha
Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Presidente do Comitê Imobiliário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Atualizador, com Melhim Namem Chalhub, a partir da 15ª edição, da obra Condomínio e Incorporações, de Caio Mário da Silva Pereira. Professor, árbitro e advogado.
Como citar: ABELHA, André. Prescrição e adjudicação compulsória: como superar o aparente dilema? In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 109, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire109>. Acesso em DD.MM.AA.
Art. 440-G (...) “§ 6º Para fins de prova de quitação, na ata notarial, poderão ser objeto de constatação, além de outros fatos ou documentos: I – ação de consignação em pagamento com valores depositados; II – mensagens, inclusive eletrônicas, em que se declare quitação ou se reconheça que o pagamento foi efetuado; III – comprovantes de operações bancárias; IV – informações prestadas em declaração de imposto de renda; V – recibos cuja autoria seja passível de confirmação; VI – averbação ou apresentação do termo de quitação de que trata a alínea 32 do inciso II do art. 167 da Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973; ou VII – notificação extrajudicial destinada à constituição em mora”.
A exemplo das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça de SP (Cap. XX, t. 2, item 464, inciso III).
Confiram-se os acórdãos nos seguintes recursos: AgInt no REsp 2.090.429/SP, AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.261.113/RJ, AgInt no AREsp n. 2.231.738/RJ, AgInt no AREsp n. 1.816.356/ES, AgInt no REsp n. 1.584.461/GO, REsp n. 1.489.565/DF, REsp 1.694.322/SP e REsp 1.601.575/PR.
De acordo com o STJ, “Na linha dos precedentes desta Corte, uma vez prescrita a pretensão de cobrança das parcelas não pagas, não é mais possível pleitear, com base no inadimplemento, a resolução do contrato. Isso porque, nessas situações, desaparece o elemento objetivo que dava suporte ao pleito desconstitutivo” (STJ, 3ª T., AgInt no REsp 1.975.113/SP, Rel. Ministro Moura Ribeiro, j. em 13.03.2023, DJe 15.03.2023).
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 4 ed. São Paulo: RT, 1983, t. VI, p. 24.
Neste sentido: OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. O exercício da exceção de contrato não cumprido e a prescrição. Revista de Processo - RePro, v. 36, n.º 191, pp. 43-55, jan. 2011.
OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Aspectos gerais da prescrição. Revista Científica Semana Acadêmica, n. 347. Disponível em https://semanaacademica.org.br/system/files/artigos/artigo_10_-_aspectos_gerais_da_prescricao.pdf. Acesso em 18.03.2024.