#94. Na pauta do STJ: prescrição impede a cobrança extrajudicial da dívida?
A coluna “Em Pauta” de hoje comenta discussão havida em ação de declaração de inexigibilidade de débito e reconhecimento da prescrição. Em primeiro grau, o pedido foi julgado improcedente. A sentença foi reformada por acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, o qual decidiu que, sendo incontroversa a ocorrência de prescrição, não há mais possibilidade de cobrança do crédito, judicial ou extrajudicialmente (como ocorre, por exemplo, pela inscrição do devedor em órgãos de proteção ao crédito para pressionar o pagamento).
A discussão chegou ao Superior Tribunal de Justiça por alegada violação ao art. 206, § 5, I CC1. Em suma, o credor da dívida sustentou não estar impedido de exercer a cobrança extrajudicial, pois a ocorrência de prescrição não extingue seu direito de crédito. Na sua visão, fundada em entendimento já adotado pela Corte, a prescrição não afasta a ocorrência de inadimplemento2 e, com isso, apenas a cobrança judicial estaria impedida.
A Terceira Turma do STJ, no julgamento do REsp n. 2.088.100/SP, de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi, confirmou o entendimento do acórdão a quo e decidiu que “a pretensão se submete ao princípio da indiferença das vias, podendo ser exercida tanto judicial, quanto extrajudicialmente. Ao cobrar extrajudicialmente o devedor, o credor está, efetivamente, exercendo sua pretensão, ainda que fora do processo.”
A coluna anota que, em decisão um pouco anterior, prolatada em setembro de 2023, a mesma Terceira Turma havia decidido em sentido diverso. No AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.334.029/SP, o entendimento foi que o direito de cobrança via extrajudicial permanece intocado com o reconhecimento da prescrição, na linha do que também já havia sido decidido em 2020 no AgInt no AREsp n. 1.592.662/SP. Ambas as decisões são mencionados na declaração de voto apartado do Ministro Marco Bellizze que, concordando com a posição da Ministra Relatora no acórdão aqui comentado, afirma que se trata de entendimentos que devem ser tidos como superados.
Na pauta do dia, está o conceito de prescrição, esmiuçado no acórdão do STJ antes da decisão de fundo e que já foi, há muito, bem elucidado pela melhor doutrina brasileira. Não deixa de ser surpreendente que essa questão, estritamente de direito, ainda enseje controvérsias e desafie definição pelo Superior Tribunal de Justiça.
Crédito, débito e pretensão (ou “do arqueiro sem arco...”)
Para falar de prescrição é imprescindível compreender as noções de crédito e débito, de um lado, e de pretensão, de outro.
Consoante bem explicado no acórdão comentado, o crédito, como direito subjetivo, e o débito, como dever que lhe é correspectivo, podem nascer antes da pretensão. Uma dívida a termo, por exemplo, já é suficiente para qualificar a existência de credor e devedor, ainda que o primeiro não possa exigir do segundo o seu cumprimento antes do termo ajustado.
A pretensão, por sua vez, é o direito de exigir o cumprimento do dever. Nas palavras de Pontes de Miranda, citadas no decisum, “desde que há exigibilidade, há pretensão”3. Em outra palavras: o devedor estará obrigado ao cumprimento desde que este seja exigível.
Na alegoria de Pontes, “o crédito é como o arqueiro, o homem que peleja com o arco. Pode estar armado e pode não estar. A arma é a pretensão. Crédito sem pretensão é crédito mutilado, arqueiro sem arco. Existe o crédito, porém não se pode exigir.”4
A noção de pretensão foi acolhida pelo legislador do Código Civil de 2002 que, em seu art. 189, dispõe que: “violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.”
O texto legal não deixa dúvida: desde ao menos a edição do CC 2002, não deveria mais existir resquício de discussão sobre o fato de que é a pretensão que é atingida (ou, em termos ponteanos, encoberta) pela prescrição. O direito subjetivo permanece ileso.
Mas, na prática, o que significa isso?
Prescrição encobre a pretensão: significados práticos
Em primeiro lugar, o reconhecimento de que a prescrição encobre a pretensão significa que ela atua no plano de eficácia. Nas palavras do acórdão, “o deslinde da controvérsia, no entanto, demanda que se examine a atuação da prescrição no Plano da Eficácia”. Não há extinção do direito, mas inviabilidade de seu exercício.
Em segundo lugar, intimamente ligado ao primeiro, insta reconhecer que, no Direito brasileiro, a prescrição é um instituto de direito material e não de direito processual: “(...) o alvo da prescrição é mesmo a pretensão, instituto de direito material”, nas palavras do STJ, advertindo-se, como faz Julio Neves, que no common law a conclusão é diversa5. A doutrina de Rodrigo Xavier Leonardo, também relembrada no acórdão, vai direto ao ponto e explica que o afastamento do direito de ação (em sentido processual) é apenas um reflexo do direito material: “a consequência processual de não poder se servir da 'ação', no entanto, não tem o condão de explicar o instituto. Trata-se de um resultado decorrente de uma prévia eficácia que se sucedeu no direito material”.6 Daí vai que o encobrimento do exercício do direito (in casu, o direito de exigir o cumprimento) opera-se independentemente da via escolhida pelo credor. A ele é defeso pretender judicialmente cumprimento de determinada prestação pelo devedor. Mas também o é pretender extrajudicialmente o seu cumprimento. A isso o acórdão, na esteira da lição de nosso maior tratadista a propósito das exceções, chama de “princípio da indiferença das vias”.7
Em terceiro lugar, como a prescrição não atinge o direito subjetivo, o eventual pagamento de dívida prescrita não caracterizará pagamento indevido (art. 882 CC8). No linguajar das ruas, paga bem aquele devedor que paga dívida prescrita. No linguajar do Direito, não há direito à repetição do indébito, pois o débito ainda existe.
E se, ainda assim, houver cobrança judicial ou extrajudicial?
Por evidente, dizer que o credor não tem mais pretensão para cobrar a dívida, judicial ou extrajudicialmente, não significa que o devedor esteja protegido de ter contra si ajuizada ação judicial ou de receber comunicação extrajudicial de cobrança. O significado prático da ocorrência da prescrição é de que, se isso ocorrer, há meios de defesa que podem ser manejados pelo devedor.
Caso iniciada ação judicial para cobrança de dívida já encoberta pela prescrição, caberá ao devedor opor a exceção de prescrição ou ao julgador reconhecer, de ofício, a sua ocorrência (art. 193 CC9 e arts. 332, §1º10 e 487, II, CPC11). O reconhecimento da prescrição levará à sentença com resolução do mérito (art. 487, CPC). O devedor que sair vitorioso na alegação de prescrição ficará (ainda que tal proteção possa não ser integralmente satisfatória), protegido pela distribuição da sucumbência em desfavor da parte credora.
Todavia, o ajuizamento de ação para cobrança não deve ser confundido nem qualificado a priori como ilícito, especialmente em um cenário jurídico no qual o prazo prescricional de pretensões ainda não está bem definido – vide, por todos, a constante discussão sobre o prazo aplicável à pretensão contratual12 bem como àquela aplicável à pretensão de restituição na invalidade, já tratada na AGIRE #85. É eventual abuso que deve ser repelido.
Exigida extrajudicialmente a cobrança, o devedor poderá a ela se opor, também extrajudicialmente, sob fundamento de ocorrência da prescrição. Caso a cobrança persista, poderá acionar o Poder Judiciário (ou arbitragem, se houver fundamento para tanto), como fez o devedor do caso aqui comentado, para reconhecer a prescrição e/ou para que o credor seja compelido a cessar as cobranças. A ação será, então, de declaração de inexigibilidade e não de inexistência de dívida.
As possibilidades pelas quais pode haver cobrança extrajudicial são diversas. Do acórdão comentado, fez-se referência a telefonemas, e-mails, mensagens de textos de celular (SMS ou Whatsapp) ou mesmo inscrição de nome do devedor em cadastro de inadimplentes. É a propósito desta última situação que a coluna traça as últimas linhas com as quais, em clima de final de ano, a autora também se despede (não sem antes agradecer a audiência às leitoras e aos leitores assíduos AGIRE) em seu último “Em Pauta” de 2023.
De volta ao caso concreto…
No caso concreto, o devedor havia sido inscrito na plataforma “Serasa Limpa Nome”. Segundo consta da decisão, este é um meio em que os credores conveniados informam dívidas e cujas informações somente são acessíveis ao próprio devedor, mediante login e senha. Não havia pedido específico para exclusão, mas o decisum concluiu que não se trata de cadastro negativo que afete o score de crédito vinculado ao devedor. A manutenção do nome do devedor na plataforma, nestes termos, não seria ilícita. Idêntica questão foi enfrentada em outro julgamento ocorrido na mesma data (REsp 2.088.100/SP), que resultou em acórdão em termos praticamente idênticos àquele noticiado.
Diferentemente, a inclusão do nome do devedor em cadastro de maus pagadores, com reflexo em seu score de crédito, equivaleria a ato de cobrança de dívida e não poderia ser mantida após a prescrição da pretensão. No caso de direito do consumidor, o art. 43, § 5º do CDC13 proíbe o fornecimento de informações que impeçam ou dificultem acesso ao crédito quando houver prescrição da pretensão à cobrança. A coluna relembra que, além da baixa por prescrição, há entendimento consolidado no enunciado da Súmula 323 do STJ14 de que é de 5 (cinco) anos o prazo máximo para manutenção do registro ativo no cadastro de maus pagadores, contados desde a data da sua inclusão.
Renata Steiner, FCIArb
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente e parecerista.
Conselheira do Conselho Administrativo da ARBITAC (Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial do Paraná).
Como citar: STEINER. Renata. Na pauta do STJ: prescrição impede a cobrança extrajudicial da dívida? In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 94, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire94>. Acesso em DD.MM.AA.
Art. 206. Prescreve: (..) § 5º Em cinco anos: I - a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular.
De fato, há julgado no STJ no sentido de que a prescrição não afasta a ocorrência do inadimplemento e que seu reconhecimento não seria equivalente ao reconhecimento de quitação da dívida contratual. No REsp n. 1.694.322/SP, lê-se que “a prescrição pode ser definida como a perda, pelo titular do direito violado, da pretensão à sua reparação. Inviável se admitir, portanto, o reconhecimento de inexistência da dívida e quitação do saldo devedor, uma vez que a prescrição não atinge o direito subjetivo em si mesmo”. De outro lado, na AGIRE #66, a coluna noticiou julgamento que considerou que, prescrita a dívida, prescrita também estaria a pretensão à resolução contratual por inadimplemento. Há, então, um limbo jurídico nessas situações?
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo VI. Atualizado por Otavio Luiz Rodrigues Junior, Tilman Quarch e Jefferson Carús Guedes. São Paulo: RT, 2013. p. 208.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XXVI. Atualizado por Ruy Rosado de Aguiar Júnior e Nelson Nery Jr. São Paulo: RT, 2012. pp. 57-58.
“Saindo do geral ao específico, para se ter em vista o fenômeno prescricional, já não se tem dúvida de que a só-recusa de tutela Estatal ao titular de direito (rectius, pretensão) pela prescrição não toca o direito de ação processual (o que não é verdade nos países de common law).” (NEVES, Julio Gonzaga Andrade. A Prescrição no Direito Civil Brasileiro: Natureza Jurídica e Eficácia. 2019. Tese (Doutorado em Direito Civil) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. p. 66).
LEONARDO, Rodrigo Xavier. A Prescrição no Código Civil Brasileiro (ou o Jogo dos Sete Erros). Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n. 47, 2010. p. 108.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo VI. Atualizado por Otavio Luiz Rodrigues Junior, TIlman Quarch e Jefferson Carús Guedes. São Paulo: RT, 2013, p. 170.
Art. 882. Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível.
Art. 193. A prescrição pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita.
Art. 332. § 1º O juiz também poderá julgar liminarmente improcedente o pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição.
Art. 487 CPC. Haverá resolução de mérito quando o juiz: (...) II - decidir, de ofício ou a requerimento, sobre a ocorrência de decadência ou prescrição; (...) Parágrafo único. Ressalvada a hipótese do § 1º do art. 332 , a prescrição e a decadência não serão reconhecidas sem que antes seja dada às partes oportunidade de manifestar-se.
Sobre o tema remete-se, novamente, a MARTINS-COSTA, Judith. ZANETTI, Cristiano de Sousa. Responsabilidade Contratual: Prazo Prescricional de Dez Anos. Revista dos Tribunais. vol. 979. Maio 2017. p. 215-241.
Art. 43, CDC. O consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes. (...) § 5° Consumada a prescrição relativa à cobrança de débitos do consumidor, não serão fornecidas, pelos respectivos Sistemas de Proteção ao Crédito, quaisquer informações que possam impedir ou dificultar novo acesso ao crédito junto aos fornecedores.
Súmula 323/STJ: A inscrição do nome do devedor pode ser mantida nos serviços de proteção ao crédito até o prazo máximo de cinco anos, independentemente da prescrição da execução.