Em razão da não obtenção de financiamento da obra pela construtora, o início da construção de determinado empreendimento imobiliário sofreu atraso substancial. Ao tempo dos fatos discutidos na decisão da coluna “Em Pauta” de hoje, o atraso já somava mais de vinte meses. Foi a essa altura que o comprador de duas unidades autônomas recebeu da vendedora a comunicação de sua intenção de extinguir os contratos de compromisso de compra e venda. Antes disso, a construtora já havia paralisado as cobranças das parcelas contratuais.
Não concordando com a extinção dos contratos, o comprador propôs ação judicial para condenar a construtora: (i) a realizar os atos de construção e finalização da obra; (ii) ao pagamento de lucros cessantes no valor de 0,5% do total do contrato por mês até a entrega das chaves e (iii) ao pagamento de multa de 10% sobre o valor do contrato. Como pedido subsidiário, requereu a resolução do contrato com a consequente restituição dos valores já pagos, da comissão de corretagem e de multa. Foi também formulado pedido de indenização por danos extrapatrimoniais, que não será tratado nestes comentários.
A instância a quo, Tribunal de Justiça de São Paulo, manteve a decisão de primeiro grau, que reconheceu a resolução do pactuado ante a “impossibilidade de construção do empreendimento em virtude da não obtenção do financiamento”. Em decorrência da imputação da impossibilidade à construtora, manteve-se também a determinação do retorno das partes ao estado anterior, com a devolução do quanto já havia sido pago pelo comprador com atualização monetária desde cada desembolso. Os pedidos indenizatórios por lucros cessantes e por multa, por sua vez, foram afastados.1
Contra a decisão, seguiu-se Recurso Especial do comprador ao argumento, conforme o STJ, de que “Tribunal a quo, ao não reconhecer o direito da parte recorrente de ser indenizada por lucros cessantes, negou vigência aos arts. 402 e 408 do Código Civil e art. 35, III, do CDC, na medida em que haveria evidente prejuízo econômico sofrido em decorrência do cancelamento do empreendimento imobiliário.”2 O pedido ao STJ e a decisão, portanto, limitaram-se a discutir a definição do dano indenizável, não abrangendo a discussão sobre a resolução do pactuado e a sua imputação à construtora.
Na decisão da Corte paulista, a não obtenção de financiamento para construção do empreendimento foi qualificada como impossibilidade de cumprimento da prestação e, com isso, razão suficiente para afastar o cumprimento específico da prestação (a construção do empreendimento). Como imputável ao devedor, entendeu-se que a construtora era responsável pela resolução do contrato.
No STJ, o caso foi julgado em fevereiro de 2024 por decisão monocrática do Ministro Raul Araújo, que manteve a decisão do TJSP e negou a indenização pleiteada. Contra ela, seguiram-se embargos de declaração, rejeitados também monocraticamente. Essa decisão desafiou agravo interno (AgInt nos EDcl no REsp n. 1.862.981/SP), julgado por unanimidade pela Quarta Turma em junho de 2024, que é comentado neste texto.
A matéria decidida: alcance da indenização
Ao julgar o Agravo Interno, a Quarta Turma do STJ manteve a negativa de provimento ao Recurso Especial. A decisão contemplou a análise de dois temas: (a) a discussão sobre a possibilidade de “bilateralizar” a cláusula penal ajustada em contrato para o descumprimento de apenas uma das partes e (b) os critérios que relevam para a condenação por lucros cessantes.
A leitura do acórdão remete a outros temas, que não serão objeto de tratamento na coluna, seja porque não foram enfrentados, seja porque o espaço limitado impede seu desenvolvimento. A título de provocação, são lançadas quatro questões: em primeiro lugar, o fato de que a resolução do pactuado, remédio à disposição do credor lesado, ter sido alegada pelo devedor, em razão do que foi qualificado como impossibilidade de cumprimento; em segundo lugar, o fato de que, negada a indenização por perdas e danos, deferiu-se ao lesado apenas a restituição do quanto pago. Restituir, entretanto, seja em caso de resolução, seja em caso de invalidade, não tem conteúdo indenizatório, consoante já se tratou na AGIRE #80; em terceiro lugar, o caso em tela aponta para a (in)existência de distinção fática entre resolução e o chamado “cumprimento pelo equivalente”: uma vez que não foi erguido o imóvel, a restituição recíproca abrange a devolução de dinheiro, sendo que também é pecuniária a forma de cálculo da indenização. Não se está, aqui, em uma zona gris?; por fim, em quarto lugar, unem-se a primeira e a terceira provocações para se colocar em dúvida a efetiva possibilidade de haver escolha entre a resolução e o cumprimento pelo equivalente pelo credor lesado em todo e qualquer caso, especialmente (mas não só) quando a resolução a ele se impõe por vontade do devedor inadimplente.
Primeira questão: é possível bilateralizar a cláusula penal?
Primeira questão decidida no julgado diz respeito ao que se pode designar de “bilateralização da cláusula penal”.
O caso em mãos auxilia à compreensão do alcance dessa polêmica figura: dos contratos discutidos, consta previsão de cláusula penal para o caso de mora no pagamento da prestação pelo comprador, mas nada se dispunha sobre o atraso na entrega do empreendimento ou a resolução do pactuado por culpa da vendedora. Diante do inadimplemento da vendedora, o comprador pleiteou a aplicação desta cláusula penal de forma bilateralizada, ou seja, em seu favor.
Segundo a decisão do STJ, contudo, a incidência da cláusula penal para além da hipótese para a qual foi concebida não poderia ser admitida, pois “(...) em virtude do caráter bilateral e sinalagmático de tal pacto, necessária prévia estipulação entre as partes para que, então, a cláusula possa ser considerada lícita e exigível.”
O mesmo entendimento havia sido adotado no TJSP: “logo, como tal cláusula foi fixada, por mútuo consenso, especificamente para o caso de inexecução contratual imputável aos adquirentes do imóvel, não é possível sua aplicação analógica para o caso de inadimplemento da vendedora, por constituir situação essencialmente diversa.”
Embora seja minha opinião que a tese da bilateralização possua várias fragilidades, o sentido adotado na decisão chama atenção em razão do quanto decidido no Tema 971 do STJ, que dispõe sobre a possibilidade de aplicação analógica da cláusula penal em favor do comprador-consumidor: “no contrato de adesão firmado entre o comprador e a construtora/incorporadora, havendo previsão de cláusula penal apenas para o inadimplemento do adquirente, deverá ela ser considerada para a fixação da indenização pelo inadimplemento do vendedor. As obrigações heterogêneas (obrigações de fazer e de dar) serão convertidas em dinheiro, por arbitramento judicial.”
Consta do relatório do acórdão do STJ que o recorrente-comprador invocou a tese fixada no julgamento do Tema 971. Da fundamentação da decisão, contudo, não se pode verificar qual teria sido o distinguishing para sua não aplicação, que acabou sendo afastada nos seguintes termos: “a cláusula foi fixada, por mútuo consenso, especificamente para o caso de inexecução contratual imputável aos adquirentes do imóvel, e não para o caso de inadimplemento da vendedora (e-STJ, fls. 540/541). Conclui-se não ser aplicável ao caso o Tema 971 do STJ.”
Segunda questão: qual o parâmetro para definição dos lucros cessantes indenizáveis?
Segunda questão decidida diz respeito à improcedência do pedido de lucros cessantes que se deu, conforme a decisão aqui comentada, pois “a jurisprudência do STJ não admite a indenização de lucros cessantes sem comprovação, rejeitando os lucros hipotéticos, remotos ou presumidos, incluídos nessa categoria os lucros que supostamente seriam gerados pela rentabilidade de atividade empresarial que nem sequer foi iniciada.” Idêntica afirmação é encontrada em julgado mais antigo da Corte, AgInt no AREsp n. 964.233/SP, julgado em 2017 e ao qual o acórdão objeto da coluna faz referência nominal.
A afirmação é um convite à reflexão.
De sua literalidade extrai-se que a rentabilidade empresarial de uma atividade que não foi iniciada foi qualificada na categoria de “lucros hipotéticos, remotos ou presumidos”. Sendo isso verdade, tais lucros cessantes são tidos como não comprovados e, portanto, tampouco indenizáveis.
Seria possível afirmar, a partir daí, que somente são lucros cessantes indenizáveis os lucros que o lesado obtinha antes e que se deixou de obter com o evento que leva à reparação?
A resposta, a meu ver, é negativa. E nesse ponto estou bem acompanhada por Gisela Sampaio, que aponta para a dificuldade dos Tribunais brasileiros (mas não só deles) em distinguir o lucro cessante indenizável do que denomina “sonhos de ganância”. A experiência prévia do lesado, embora seja um critério possível de cálculo do lucro cessante, não é o único.3 Ter experiência pretérita não é, assim, imprescindível para indenização por lucros cessantes.
No caso específico do atraso de entrega de imóveis, a negativa de indenização do lucro cessante em razão da inexistência de atividade pretérita é entendimento que contrasta com jurisprudência bem consolidada do STJ que presume a ocorrência de lucros cessantes pela não entrega de imóveis ao tempo devido, que são calculados pelo valor do locativo mensal. Como ensina Gisela Sampaio, tal jurisprudência acaba por acolher o critério de quantificação com base na comparação do mercado e não pela experiência prévia do lesado.4
É verdade que, recentemente, tal presunção foi colocada à prova no julgamento do AgInt no REsp n. 1.881.482/SP, em que se entendeu que ela não se aplica quando houver resolução do pactuado. Não é objetivo da coluna referir aos argumentos desta decisão, embora se registre meu entendimento pessoal de que presunção de lucros cessantes mereça mesmo ser rediscutida, pois contraposta à regra geral de que danos devam ser provados pelo lesado e, aplicada somente às operações imobiliárias, cria tratamento desigual entre compradores de imóveis e outros credores em situações análogas. Fato é, contudo, que a decisão ora comentada não referiu ao afastamento de presunção nem aos argumentos da recente decisão, limitando-se a manter a recusa de indenização pela lucratividade futura ao argumento de que “a jurisprudência do STJ não admite a indenização de lucros cessantes sem comprovação”. A afirmação, com todo o respeito, não reflete exatamente a posição da Corte a propósito dos contratos imobiliários.
Em adição: qual o grau de prova exigido para an e para o quantum debeatur?
Se tais foram os temas tratados no acórdão comentado, a coluna aproveita a oportunidade para lançar outra discussão.
Na AGIRE #117, apresentou-se à leitora e ao leitor o caso SIGA vs. PharmAthene, julgado pela Suprema Corte de Delaware. O caso dizia respeito à quantificação do dano por violação do dever (naquele caso, expresso) de negociar de boa-fé. O foco da coluna foi a definição do dano indenizável, analisado sob a óptica da situação em que o lesado estaria não fosse o evento lesivo.5
Mas as decisões sobre o caso SIGA contêm ainda uma outra passagem interessante, que deliberadamente não foi tratada naquela coluna: qual o impacto da atuação do lesante na definição do grau de prova do quantum exigido do credor lesado?
Nas palavras da decisão da Court of Chancery de Delaware, a existência de dano indenizável deve ser certa, mas sua quantificação não necessariamente: “enquanto a prova da existência do dano deva ser certa, a prova de seu quantum pode ser estimada, incerta ou inexata” (em tradução livre).6 Em adição, considerou-se que as circunstâncias que circundam o inadimplemento também devem impactar a rigidez do ônus probatório exigido e dúvidas sobre o quantum indenizatório devem ser solucionadas contra a parte lesante:
“Dúvidas [a propósito da extensão dos danos] geralmente são resolvidas em desfavor da parte lesante. Não deve ser permitido a uma parte que, por seu próprio descumprimento, forçou a outra parte a buscar ressarcimento de danos a lucrar com o seu descumprimento quando se estiver definido que uma perda significativa ocorreu. A Corte deve levar em consideração todas as circunstâncias do descumprimento, incluindo a intenção, para decidir se será necessário um grau menos elevado de certeza, dando maior discricionariedade ao julgador. Os danos não precisam ser calculáveis com precisão matemática e muitas vezes são, na melhor das hipóteses, aproximados (em tradução livre).”7
No caso específico da pretensão de PharmAthene, levou-se em consideração a atuação de SIGA na violação do dever de negociar para considerar a existência de danos, cuja quantificação foi considerada provada por laudo técnico apresentado por PharmAthene e que representavam, em síntese, a soma da lucratividade esperada pelo contrato que não foi celebrado. Naquele caso, a atividade pretendida com o contrato era a exploração conjunta de determinada patente, detida por SIGA, por PharmAthene. A exploração conjunta nunca saiu do papel, mas isso não foi obstáculo à condenação.
É um interessante convite à reflexão também à luz do Direito brasileiro.
Renata Steiner, FCIArb
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente e parecerista.
Conselheira do Conselho Administrativo da ARBITAC (Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial do Paraná).
Como citar: STEINER, Renata. Na pauta do STJ: resolução de contrato imobiliário e indenização. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 122, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire122>. Acesso em DD.MM.AA.
Na decisão de primeiro grau, não se concedeu a indenização por lucros cessantes, pois “…não restou demonstrado o prejuízo sofrido com a desistência da requerida no que tange à construção do imóvel, ou seja, deixa de comprovar aos autos a perda de uma oportunidade consistente na rescisão faticamente operada. Tal porque, sequer discorre em sua inicial, quais seriam os prejuízos materiais decorrentes da rescisão, não se apontando eventuais valores despendidos com alugueres durante o período, bem como a existência de promessa de venda ou locação de referido imóvel à terceiro”. Em razão da data de distribuição da ação, não há acesso disponível à petição inicial, mas do relatório do acórdão comentado consta que o pedido indenizatório dizia respeito aos alugueis deixados de auferir, o que é coisa diversa da valorização dos imóveis. Já as multas contratuais foram afastadas porque sua incidência foi pleiteada sobre o montante integral do contrato, mas ao tempo da resolução, o comprador ainda não havia quitado todo o preço ajustado. Embora mantida a improcedência, não foi este o argumento adotado no STJ e no TJSP, como se verá.
CC, Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.
CC, Art. 408. Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora.
CDC, Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha: III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos.
SAMPAIO, Gisela. Lucros cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 177.
SAMPAIO, Gisela. Lucros cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 181.
Maiores considerações sobre o julgamento são trazidas em STEINER, Renata. Quantificação do dano por violação do dever de negociar de boa-fé: uma leitura “tropicalizada” do caso SIGA vs. PharmAthene. In: ADAMEK, Marcelo von e SETOGUTI, Rafael. Fusões e Aquisições (M&A). Volume II (no prelo).
O excerto consta da decisão no caso SIGA (on remand), disponível aqui (p.19), a qual remete a Supr. Ct. Op., 67 A.3d 330, 351 n.99 (Del. 2013).
Decisão SIGA (on remand), disponível aqui (p. 20). A citação transcrita é feita referência às seguintes decisões: Cura Fin. Servs. N.V. v. Elec. Payment Exch., Inc., 2001 WL 1334188, at *20 (Del. Ch. Oct. 22, 2001); Great Am. Opportunities, Inc. v. Cherrydale Fundraising, LLC, 2010 WL 338219, at *23 (Del. Ch. Jan. 29, 2010).