#117. Violação do dever de negociar de boa-fé: reflexões a partir de “SIGA vs. PharmAthene”
A coluna “Em foco” desta semana traz para solo brasileiro um caso norte-americano: SIGA Technologies vs. PharmAthene Inc., julgado em 2015 pela Suprema Corte do Estado de Delaware.1 O caso SIGA, como será aqui chamado, permite análise sob diferentes perspectivas. Como recorte, a coluna sugere uma leitura “tropicalizada” focada na qualificação do dever descumprido e na quantificação do dano por sua violação.
Os fatos
Em 2004, SIGA adquiriu determinada tecnologia para produção de remédio antiviral de tratamento contra a varíola, cujos testes ainda não haviam sido concluídos.
Ao final de 2005, em razão de problemas financeiros, SIGA iniciou negociações para futura operação societária com PharmAthene, o que levou à celebração de três acordos:
(i) License Agreement Term Sheet (Term Sheet), que estabelecia os termos de futura parceria para desenvolvimento do medicamento e da cessão da licença exclusiva desse remédio pela SIGA à PharmAthene;
(ii) Bridge Loan Agreement, pelo qual PharmAthene emprestou U$ 3 milhões à SIGA; e
(iii) Merger Agreement, sujeito a termo extintivo, voltado à fusão das sociedades.
O Bridge Loan Agreement e o Merger Agreement continham claúsulas que previam a obrigação de negociar de boa-fé a conclusão do contrato de licença do medicamento nos termos do Term Sheet, caso as negociações para fusão entre as sociedades não fossem bem-sucedidas.2
Com a progressão dos testes e obtenção de resultados altamente satisfatórios, Siga perdeu interesse na fusão e encerrou as negociações relativas ao Merger Agreement. As tratativas do Term Sheet, porém, continuaram. Foi no contexto de sua negociação que Siga propôs uma minuta de contrato de licença que se afastava drasticamente do conteúdo do Term Sheet, em seu próprio benefício. Após rejeitar as alterações, PharmAthene ajuizou ação judicial para remediar o descumprimento da obrigação de negociar de boa-fé.
As decisões
O caso foi objeto de duas decisões da Court of Chancery e duas da Suprema Corte de Delaware, conforme histórico abaixo resumido:
Em 2011, a Court of Chancery concluiu que SIGA violou a obrigação de negociar de boa-fé o contrato de licença e condenou-a a pagar indenização calculada com base equitativa3;
Em 2013, em recurso contra a decisão supra, a Suprema Corte de Delaware qualificou o Term Sheet como um contrato preliminar, afastou a quantificação equitativa do dano e determinou a revisão do quantum, retornando o caso à instância inferior4;
Em 2015, a Court of Chancery decidiu novamente sobre a quantificação de danos e entendeu que PharmAthene tinha direito à indenização por expectativa dos lucros que obteria com o contrato definitivo, não celebrado, os quais foram quantificados, a partir de prova técnica, no valor de US$ 113 milhões;
Ainda em 2015, após recurso de ambas as partes contra a decisão supra, a Suprema Corte de Delaware manteve a decisão e concluiu que a PharmAthene havia demonstrado que o descumprimento contratual lhe causou danos em razão da perda de oportunidade de desenvolver a vacina, de acessar financiamento público para o seu desenvolvimento e de melhorar sua reputação.5 A decisão concluiu, ainda, que a violação do dever contratual de negociar de boa-fé deveria levar à indenização do expectation interest, de modo a “pôr o lesado na mesma situação em que estaria se a outra parte tivesse cumprido o contrato”. Esse critério é contraposto ao reliance interest, que veio acolhido no voto dissidente, cujo objetivo é “colocar o lesado na mesma situação em que estava antes do contrato”.6
Os conceitos “interesse positivo” e “interesse negativo” podem ser vinculados, em termos aproximativos, ao “expectation interest” e ao “reliance interest”, repectivamente. Eles já frequentaram a AGIRE em algumas oportunidades: a edição #44 apresentou os conceitos e as edições comemorativas “Em festa”, #100.1, #100.2 e #100.3, trataram de sua aplicação no caso de resolução.
Para além da questão de foco da coluna, as decisões do caso SIGA trouxeram relevantes considerações sobre graus de “preliminariedade” de contratos preliminares, a possibilidade ou não de execução específica da obrigação de contratar e o impacto da má-fé de uma das partes sobre o ônus da prova a propósito do quantum indenizável.
Critérios para definição do dano indenizável
A decisão final do caso concluiu que SIGA violou a obrigação de negociar de boa-fé e que, sem esse descumprimento, o contrato de licença teria sido concluído de acordo com o Term Sheet. Por essas razões, PharmAthene teria direito a indenização que considerasse o lucro esperado com o contrato não concluído. O fundamento da decisão parece estar localizado entres duas conclusões: em primeiro lugar, na qualificação do dever descumprido como dever contratual e, em segundo lugar, na regra de causalidade (“but for”7), como se vê deste excerto:
“Quando as partes têm um acordo preliminar para negociar de boa-fé do Tipo II, e o juiz de primeira instância faz uma constatação de fato, com base nos autos, de que as partes teriam chegado a um acordo não fosse pelas má-fé do réu, o autor tem direito a receber danos pela sua expectativa no contrato.”
No que toca ao primeiro ponto, a constatação de que houve violação de um dever contratual, pois o dever de boa-fé violado estava fundado nas cláusulas contratuais que previam a obrigação de negociar de boa-fé, não se mostra suficiente para que, no Direito brasileiro, se concluísse que a indenização deva ser calculada com base no interesse positivo.
Em obra monográfica sobre o tema, propus que a definição do interesse indenizável é realizada pelo que denominei de “método do duplo filtro”.8 Ao empregar o primeiro filtro, o momento em que a falha se deu é tomado como um indicativo tendencial do sentido da indenização. Nessa etapa do raciocínio, entende-se que, na violação contratual, a indenização tende a ser medida pelo interesse positivo e, ao contrário, na violação pré-contratual, ela tende a ser medida pelo interesse negativo. O segundo filtro reclama depurar com maior precisão qual foi o dever violado e a consequência aplicável à espécie. Esse resultado pode confirmar a tendência obtida no primeiro filtro, mas poderá também levar a uma “correção de rota”, com a inversão do sentido da indenização antes obtido. A aplicação prática do método foi tratada na AGIRE #62.
Interesse positivo e interesse negativo, portanto, são conceitos que sintetizam a situação a que o lesado será conduzido, mas não são critérios definidores das hipóteses em que se aplicam. No caso de violações contratuais, “se é certo que a hipótese de descumprimento, tendencialmente, leva à reparação do interesse positivo, isso não importa assumir esse direcionamento como necessário.”9 Do mesmo modo, a responsabilidade por atos praticados na fase de formação do contrato não necessariamente será pautada pelo interesse negativo.10
Vai daí que a qualificação do dever de boa-fé, como contratual ou como extracontratual, não é a pedra de toque para definir o direcionamento da indenização.
O raciocínio não impede, como se vê, que a indenização por ilícito na fase formativa seja direcionada à reparação do interesse positivo. É possível, embora excepcional, que o desenvolvimento da negociação atinja um ponto tal no qual se crie entre as partes efetivo dever de contratar. Neste caso, a confiança é densificada a ponto de fundamentar o dever de contratar e, conforme Paulo Mota Pinto, o “evento que obriga à reparação” passa a ser “a não conclusão do contrato”.11 E foi exatamente isso que se passou em SIGA.
No que toca ao segundo ponto, a decisão concluiu que, não fosse o seu arrependimento em relação à operação (que passou a não fazer mais sentido para SIGA, uma vez que vislumbrou que poderia seguir sozinha com o desenvolvimento e a exploração da licença), o contrato teria sido celebrado conforme o conteúdo que já havia sido estipulado no Term Sheet. É seguro dizer que a reparação do interesse positivo não foi fundada apenas na natureza contratual do dever violado, mas também na causalidade entre a conduta e a situação em que o lesado estaria sem a violação.
No Brasil, uma solução semelhante poderia ser alcançada pelo mesmo caminho. Mas é importante anotar que a densificação da confiança a grau máximo quanto à efetiva contratação será depende de elementos extraíveis do comportamento das partes e da prova produzida a respeito do que se passaria não fosse o evento lesivo. Ela não decorre, automaticamente, da fonte do dever violado (se negocial ou extranegocial, portanto).
Dito isso, as linhas acima não devem levar à conclusão de que a existência de ajuste expresso sobre a obrigação de negociar de boa-fé, como havia no caso SIGA, seja indiferente. Há ao menos três pontos que emergem de sua pactuação: (i) atrair a aplicação do regime da responsabilidade contratual e suas várias vicissitudes12; (ii) definir (se houver previsão negocial) o locus para solução da controvérsia (como já se tratou na AGIRE #89) e (iii) permitir que as partes estipulem ex ante o modo como se desenvolverão as negociações, o que pode conferir critérios mais seguros e previsíveis para o julgamento sobre seu eventual descumprimento.13
Renata Steiner, FCIArb
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente e parecerista.
Conselheira do Conselho Administrativo da ARBITAC (Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial do Paraná).
Como citar: STEINER, Renata. Violação do dever de negociar de boa-fé: reflexões a partir de “SIGA vs. PharmAthene”. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 117, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire117>. Acesso em DD.MM.AA.
A coluna não teria sido escrita sem a ajuda inestimável de Beatriz Uchôas Chagas, que merece todos os agradecimentos.
Cláusula 2.3 (a), Bridge Loan Agreement: “Upon any termination of the Merger Term Sheet …, termination of the Definitive Agreement relating to the Merger, or if a Definitive Agreement is not executed …, SIGA and PharmAthene will negotiate in good faith with the intention of executing a definitive License Agreement in accordance with the terms set forth in the [LATS] and [SIGA] agrees for a period of 90 days during which the definitive license agreement is under negotiation, it shall not, directly or indirectly, initiate discussions or engage in negotiations with any corporation, partnership, person or other entity or group concerning any Competing Transaction without the prior written consent of the other party or notice from the other party that it desires to terminate discussions hereunder.”.
Cláusula 12.3, Merger Agreement: “Upon any termination of this Agreement, SIGA and PharmAthene will negotiate in good faith with the intention of executive a definitive License Agreement in accordance with the terms set forth in the [LATS] and SIGA agrees for a period of 90 days during which the definitive license agreement is under negotiation, it shall not … initiate discussions or engage in negotiations with any corporation, partnership, person or other entity or group concerning any Competing Transaction . . . without the prior written consent of PharmAthene...”.
A decisão fixou a indenização com fundamento em “equitable payment stream”, assim calculada: quando a Siga obtivesse US$ 40 milhões em lucros líquidos ou margem com as vendas líquidas do medicamento, PharmAthene teria direito a 50% de todos os lucros líquidos de tais vendas, até a expiração de dez anos após a primeira venda comercial de qualquer produto derivado.
SIGA Techs. Inc. v. PharmAthene, Inc., 67 A.3d 330, 347 (Del. 2013). Disponível em https://courts.delaware.gov/opinions/download.aspx?ID=189780. Acesso em 04.05.2024.
SIGA Techs. Inc. v. PharmAthene, Inc., 2015, Del. Lexis 678, Dec. 23, 2015, disponível em: https://courts.delaware.gov/opinions/download.aspx?ID=234170. Acesso em 04.05.2024.
As definições são de FULLER, L.L. e PERDUE, William R. The reliance interest in contract damages. In: Yale Law Journal. vol. 46, n. 52, 1936-1937, p. 54.
“A crucial built-in feature of the damages award is the requirement of factual causation. Only if the claimant would not have suffered a detriment or achieved a gain 'but for the breach (which is in Latinate form the sine qua non test) is the loss recoverable (…)’”. (KRAMER, Adam. The law of contract damages. Second edition. Oxford and Portland: Hart Publishing, 2017, p. 13).
STEINER, Renata C. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo. Quartier Latin, 2018, pp. 175 e sg.
STEINER, Renata C. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo. Quartier Latin, 2018, p. 74.
Nesse sentido: “…não se verifica na responsabilidade pré-contratual a lesão a um tipo único de interesse, como ao invés pretende a communis opinio que, como se sabe, considera sob essa perspectiva a identificação de tal responsabilidade à indenização do dano no limite do interesse negativo (…) A locução culpa in contrahendo ou responsabilidade pré-contratual não designa, assim, ao meu modo de ver, uma forma de responsabilidade conceitualmente unitária e funcionalmente homogênea, mas sim uma variedade de ilícitos, de várias naturezas e cuja característica comum é unicamente a localização cronológica da conduta lesiva, ou seja, a verificação dessa conduta na fase de tratativas ou de formação de um contrato” (em tradução livre). (LUMINOSO, Angelo. La lesione dell’interesse contrattuale negativo (e dell’interesse positivo) nella responsabilità civile. In: Contratto e impresa. Quarto ano, Padova: Cedam, 1988, p. 794).
MOTA PINTO, Paulo. Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo. Vol. II. Coimbra: Coimbra, 2008, p. 1347. De Nuno Manuel Pinto de Oliveira, colhe-se a elucidativa expressão “ponto de não retorno” para designar o momento em que a confiança deixa de ser tutelada na esfera da liberdade contratual negativa – em que ainda é possível não concluir o contrato – e passa ser tutelada como vinculada à obrigação de contratar. Cf. OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto. Culpa in contrahendo. Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo. Ac. Do STJ de 26.1.2006, Proc. 4063/05. Anotações. In: Cadernos de Direito Privado, nº 20, out.-dez./2007, p. 35.
Judith Martins-Costa lista nada mais nada menos que oito pontos em que os regimes contratual e extracontratual se afastam, quais sejam: “as diversas regras incidentes, numa e noutra, sobre a capacidade das partes; as regras de prova e as presunções sobre o onus probandi; a importância, ou não, da avaliação da culpa; a importância, ou a desimportância dos graus de culpa para a imputação do dever de indenizar; o dies a quo para a fixação da indenização, inclusos juros e correção monetária; a possibilidade de prefixar perdas e danos e a de limitar ou excluir o dever de indenizar, bem como é também distinto o prazo prescricional de uma e de outra modalidade de responsabilidade civil.” (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para sua aplicação. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 177).
Para maior desenvolvimento do tema, seja consentido remeter a STEINER, Renata C. Quantificação do dano por violação do dever de negociar de boa-fé: uma leitura “tropicalizada” do caso SIGA vs. PharmAthene. In: ADAMEK, Marcelo von e SETOGUTI, Rafael. Fusões e Aquisições (M&A). Volume II (no prelo).