#141. Disgorgement of profits (perda de lucros ilegítimos) e invalidade contratual
por Guilherme Reisdorfer
O tema: entre privado e público
O disgorgement of profits corresponde a remédio para suprimir vantagens (“lucro por intervenção” ou “lucros ilegítimos”) obtidas por um dado sujeito que se vale de bem ou direito de outrem de forma antijurídica e disso extrai vantagens indevidas, sem necessariamente produzir dano propriamente dito.
Como notado pela doutrina, se não há (necessariamente) dano a ser reparado, o disgorgment of profits não consiste em solução de responsabilidade civil (sobre a distinção e relação de complementaridade, remete-se à AGIRE #23).1 Trata-se de construção para resolver situação de enriquecimento sem causa , que melhor se enquadra na hipótese disciplinada pelo art. 884 do Código Civil: “aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários”.2
É um tema atual no direito privado, doméstico e internacional, como se viu em AGIRE #108. Mas isso também é verdade no direito público: muito se tem debatido, no Poder Judiciário e nos Tribunais de Contas, sobre o cabimento dessa solução aos contratos administrativos e, mais especificamente, no caso de invalidade contratual.
O peculiar sistema de nulidades dos contratos administrativos
A Lei 14.133/21 é a atual lei geral de licitações e contratos administrativos. No tocante à nulidade dos contratos, o art. 147 da Lei 14.1333 incorpora política legislativa pragmática e consequencialista.4 Diante de “irregularidade no procedimento licitatório ou na execução contratual”, privilegia-se a manutenção do contrato como solução geral e primária, excepcionada apenas “caso não seja possível o saneamento” da irregularidade. Desse modo, ainda segundo o art. 147, “a declaração de nulidade do contrato somente será adotada na hipótese em que se revelar medida de interesse público”, o que pressupõe a consideração abrangente das mais variadas consequências – à administração e à coletividade – que a interrupção do contrato possa acarretar.5
Um ponto importante corresponde à eficácia da desconstituição do contrato, que é regulada por quatro regras principais:
O art. 1486 prevê que a desconstituição do contrato “operará retroativamente, impedindo os efeitos jurídicos que o contrato deveria produzir ordinariamente e desconstituindo os já produzidos”;
O § 1º do art. 148 define que, na medida em que não seja possível a reconstituição da situação fática original (como ocorre com o serviço que é fruído, com a obra que acede ao imóvel público ou com o bem que é consumido, por exemplo), “a nulidade será resolvida pela indenização por perdas e danos, sem prejuízo da apuração de responsabilidade e aplicação das penalidades cabíveis”;
O § 2º do art. 148 autoriza a modulação de efeitos, ao indicar que, “ao declarar a nulidade do contrato, a autoridade, com vistas à continuidade da atividade administrativa, poderá decidir que ela só tenha eficácia em momento futuro, suficiente para efetuar nova contratação, por prazo de até 6 (seis) meses, prorrogável uma única vez”;
Por fim, o art. 1497 prevê que “a nulidade não exonerará a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que houver executado até a data em que for declarada ou tornada eficaz, bem como por outros prejuízos regularmente comprovados, desde que não lhe seja imputável, e será promovida a responsabilização de quem lhe tenha dado causa”.
É esse conjunto normativo que origina a controvérsia examinada neste artigo, sobre a qual o TCU teve oportunidade de se manifestar.
A Lei 14.133 comporta a lógica do disgorgment of profits? Segundo o TCU, sim
Em julgamento já abordado na AGIRE #80, o TCU entendeu que, nos casos em que a nulidade do contrato seja imputável ao contratado, ele tem direito à indenização pelo que houver executado. Essa indenização, porém, será restrita aos custos incorridos na execução do contrato, com a retenção – ou a restituição – da margem de lucro correspondente às parcelas executadas. Basicamente, isso se daria para (i) evitar enriquecimento sem causa do contratado; (ii) promover seu retorno ao estado anterior à contratação; e (iii) realizar os comandos dos arts. 148 e 149 da Lei 14.133/21 e do art. 884 do Código Civil, na medida em que, segundo a Corte de Contas, a restituição dos lucros ilegítimos não seria “uma sanção, mas sim uma consequência jurídica de natureza predominantemente civil”.8
Trata-se de acórdão bem fundamentado, cuja análise justificaria desenvolvimento mais pormenorizado. A seguir são apresentadas notas pontuais sobre as premissas e conclusões adotadas pelo TCU.
Contrapontos à orientação do TCU
O art. 149 da Lei 14.133 estipula que as prestações executadas e recebidas pelo ente estatal devem ser remuneradas, “desde que [a nulidade] não lhe seja imputável [ao contratante privado], e será promovida a responsabilização de quem lhe tenha dado causa”.
Por uma questão de vedação ao enriquecimento sem causa (e, em termos constitucionais, de vedação ao confisco), em geral prevaleceu a compreensão de que, mesmo em situação de falta de boa-fé (e até de má-fé), o contratado deveria ser remunerado pelos custos incorridos na execução de contrato em favor da administração.9 A dúvida recai sobre a questão do lucro que pode estar embutido nessa remuneração: poderia alguém, tendo dado causa à nulidade do contrato, lucrar com tal situação?
A questão precisa ser resolvida de forma conjugada com o art. 148 da Lei 14.133, de acordo com o qual as partes devem ser restituídas à situação em que se encontrariam se não tivesse ocorrido a contratação. A solução de retorno ao status quo é bilateral, ou seja, atinge tanto o particular, quanto a administração pública.
Já por isso, pode-se apontar uma primeira razão de incompatibilidade do disgorgement com a sistemática legal no âmbito das invalidades contratuais. A pretexto de retirar uma vantagem do contratado, o disgorgement colocaria a administração pública em situação artificial – distinta do status quo e distinta também de qualquer situação hipotética de execução sadia do contrato, pois implicaria admitir o recebimento de prestações a preço de custo, sem qualquer margem de remuneração. Em outras palavras, promove-se enriquecimento da administração sem norma autorizativa e em descompasso com a determinação do art. 148 (sem causa, portanto).
Uma segunda razão diz respeito à concepção de lucro adotada pelo TCU, que considera haver uma distinção ontológica entre lucro e custos. Do ponto de vista econômico, o lucro remunera uma série de custos que não se confundem com as despesas havidas com emprego de recursos tangíveis. São custos de oportunidade (que, aliás, a própria administração deve levar em consideração ao anular ou não o contrato – art. 147, inc. XI), de capital e de riscos assumidos. Desconsiderar que durante a execução do contrato o particular teve um custo intangível mobilizado ao longo do tempo significa subtrair o seu patrimônio, não propriamente retorná-lo ao status quo.10
Na realidade, é o sistema de responsabilização administrativa (não civil) que prevê a perda de valores recebidos indevidamente. Tal consequência é prevista na lei de improbidade administrativa e na lei anticorrupção (arts. 12, I e II11, e 19, inc. I12, das Leis 8.429/92 e Lei 12.846/13, respectivamente). Essa é terceira razão para questionar a conclusão alcançada pelo TCU, especificamente na parte em que se refere que a perda do lucro não constituiria sanção. Se há tratamento legislativo especial e excepcional da perda do lucro como sanção (e não como remédio civil), sujeita à reserva de jurisdição, tal solução não pode ser considerada como resultado automático e universal, derivado da incidência do art. 884 do Código Civil.
Nem sempre, afinal, o particular terá direito ao lucro
Em síntese, é possível o contratado perder (ou deixar de haver) o lucro pelo que houver executado, mas não por força dos arts. 148 e 149 da Lei 14.133. A perda de lucro é resultado que pode ser determinado por meio de sistemas sancionatórios próprios, que envolvem a observância de conjunto normativo peculiar, com a necessária observância da pessoalidade da pena e a sistemática de dosimetria das sanções aplicadas. Como sanção, a perda de lucro fica sujeita a um juízo de ponderação, que contempla, entre outros fatores, o exame da gravidade da infração e da culpabilidade do sujeito.13
Contudo, como a realidade é complexa, diversas situações impõem desafios específicos. Um exemplo adicional: pense-se em irregularidade imputável ao particular que deriva de sobrepreço (ou seja, é a irregularidade do próprio preço e da margem de lucro correspondente que justifica a anulação do contrato). Nesse caso, observado o devido processo, em princípio pode ser cabível que os valores a serem pagos sejam ajustados aos “parâmetros de mercado para o objeto contratado” (art. 171, inc. III, da Lei 14.133). Isto é: a administração permanece obrigada a pagar o valor devido segundo margem de lucro regular (e não a margem excessiva que tenha justificado a anulação), sem prejuízo de eventual responsabilização administrativa e penal vir a importar na perda do lucro eventualmente tido como ilegítimo.
Por outro lado, pode-se indagar: em meio a semelhanças e diferenças entre os regimes jurídicos de contratos públicos e privados, em que medida a discussão estabelecida no TCU contribui para a aplicação do art. 182 do Código Civil14?
Guilherme Reisdorfer
Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo. Sócio de Justen, Pereira, Oliveira e Talamini Advogados.
Como citar: REISDORFER, Guilherme. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 141, 2025. Disgorgement of profits (perda de lucros ilegítimos) e invalidade contratual. Disponível em: https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire141>. Acesso em DD.MM.AA.
TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Revisitando o lucro da intervenção: novas reflexões para antigos problemas. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 29, p. 281-305, jul./set. 2021. A propósito da aplicação dessas premissas aos contratos administrativos, conferir SCHWIND, Rafael Wallbach. Reabilitação e autossaneamento de licitantes: Impedimento, inidoneidade, Análise de Impacto Sancionatório e o Regime de Recuperação Habilitatória. Belo Horizonte: Fórum, 2025 (no prelo).
O que é compatível com o entendimento consignado no Enunciado 35 da 1ª Jornada de Direito Civil: “A expressão ‘se enriquecer à custa de outrem’ do art. 886 [884] do novo Código Civil não significa, necessariamente, que deverá haver empobrecimento”.
Art. 147. Constatada irregularidade no procedimento licitatório ou na execução contratual, caso não seja possível o saneamento, a decisão sobre a suspensão da execução ou sobre a declaração de nulidade do contrato somente será adotada na hipótese em que se revelar medida de interesse público, com avaliação, entre outros, dos seguintes aspectos: (…) Parágrafo único. Caso a paralisação ou anulação não se revele medida de interesse público, o poder público deverá optar pela continuidade do contrato e pela solução da irregularidade por meio de indenização por perdas e danos, sem prejuízo da apuração de responsabilidade e da aplicação de penalidades cabíveis.
Para uma comparação entre o regime publicista e o regime privado, remete-se a STEINER, Renata C. Decretação de nulidade do negócio jurídico: diálogo público vs. privado. In JUSTEN, Monica Spezia et al (coord.). Uma visão humanista do Direito: homenagem ao Professor Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2025 (no prelo).
Tais consequências são listadas nos incisos do art. 147: “I - impactos econômicos e financeiros decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato; II - riscos sociais, ambientais e à segurança da população local decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato; III - motivação social e ambiental do contrato; IV - custo da deterioração ou da perda das parcelas executadas; V - despesa necessária à preservação das instalações e dos serviços já executados; VI - despesa inerente à desmobilização e ao posterior retorno às atividades; VII - medidas efetivamente adotadas pelo titular do órgão ou entidade para o saneamento dos indícios de irregularidades apontados; VIII - custo total e estágio de execução física e financeira dos contratos, dos convênios, das obras ou das parcelas envolvidas; IX - fechamento de postos de trabalho diretos e indiretos em razão da paralisação; X - custo para realização de nova licitação ou celebração de novo contrato; XI - custo de oportunidade do capital durante o período de paralisação”.
Art. 148. A declaração de nulidade do contrato administrativo requererá análise prévia do interesse público envolvido, na forma do art. 147 desta Lei, e operará retroativamente, impedindo os efeitos jurídicos que o contrato deveria produzir ordinariamente e desconstituindo os já produzidos. § 1º Caso não seja possível o retorno à situação fática anterior, a nulidade será resolvida pela indenização por perdas e danos, sem prejuízo da apuração de responsabilidade e aplicação das penalidades cabíveis. § 2º Ao declarar a nulidade do contrato, a autoridade, com vistas à continuidade da atividade administrativa, poderá decidir que ela só tenha eficácia em momento futuro, suficiente para efetuar nova contratação, por prazo de até 6 (seis) meses, prorrogável uma única vez.
Art. 149. A nulidade não exonerará a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que houver executado até a data em que for declarada ou tornada eficaz, bem como por outros prejuízos regularmente comprovados, desde que não lhe seja imputável, e será promovida a responsabilização de quem lhe tenha dado causa.
Acórdão 1.842/22-Plenário, Rel. Min. Antonio Anastasia, j. 10.08.2022.
“Não obstante, consoante se extrai do caput do art. 59 da Lei 8.666/1993, quer sob a boa-fé, quer sob a má-fé, a Administração não se exonera da obrigação da devolução do bem (restituição) . Nesse aspecto, embora o contratado de má-fé não se beneficie com a ampla proteção legal, não lhe é retirada a posição normal de quem sofreu com a declaração de invalidade do contrato, isto é o retorno ao estado anterior” (STJ, REsp 1.153.337/AC, Rel. Min. Castro Meira. Dje 24.5.2012).
O tema foi tratado em FARACO, Alexandre Ditzel. A perda do lucro ilegítimo no contrato administrativo nulo. Revista de Direito Administrativo, Infraestrutura, Regulação e Compliance. n. 28. ano 8. p. 173-190. São Paulo: Ed. RT, jan./mar. 2024.
Art. 12. Independentemente do ressarcimento integral do dano patrimonial, se efetivo, e das sanções penais comuns e de responsabilidade, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: I - na hipótese do art. 9º desta Lei, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos até 14 (catorze) anos, pagamento de multa civil equivalente ao valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo não superior a 14 (catorze) anos; II - na hipótese do art. 10 desta Lei, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos até 12 (doze) anos, pagamento de multa civil equivalente ao valor do dano e proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo não superior a 12 (doze) anos; (…).
Art. 19. Em razão da prática de atos previstos no art. 5º desta Lei, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por meio das respectivas Advocacias Públicas ou órgãos de representação judicial, ou equivalentes, e o Ministério Público, poderão ajuizar ação com vistas à aplicação das seguintes sanções às pessoas jurídicas infratoras: I - perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé; (…).
Sobre os elementos a serem considerados e as distinções aplicáveis, inclusive quanto à existência de má-fé (ou não) do sujeito que dá causa à nulidade: CÂMARA, Jacintho Arruda. Tratado de Direito Administrativo: Licitação e Contratos Administrativos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 396.
Art. 182. Anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente.