#158. Na pauta do STJ: notificação premonitória
A coluna “Em pauta” de hoje trata de tema singelo, mas objeto de corriqueiras dúvidas: a notificação premonitória para a resolução de contrato. Essa foi uma das questões enfrentadas, no contexto de promessa de compra e venda de imóvel, no AgInt nos EDcl no AREsp n.º 2.113.760/MS, julgado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça em 15.4.2025.
A controvérsia fática
Os contornos fáticos da controvérsia são simples, o que permite a descida em profundidade na questão principal que se propôs a enfrentar.
Discutia-se a extinção de contrato de promessa de compra e venda de uma área rural, denominada Chácara Nossa Senhora Aparecida. O preço de aquisição deveria pago tanto em dinheiro, quanto pela entrega de um apartamento em Campo Grande, até dezembro de 2013. Diante do inadimplemento dos compradores, o vendedor buscou e obteve êxito em resolver judicialmente o contrato por culpa exclusiva dos réus. Ele alegou que o apartamento a ser entregue como parte do preço de aquisição da chácara nem mesmo pertencia aos compradores e que, por isso, não poderia ser entregue em pagamento.
Os compradores recorreram da sentença que reconheceu o inadimplemento, alegando que não haviam sido previamente “constituídos em mora” e que isso seria condição de procedibilidade da ação. Conforme afirmaram, o imóvel adquirido não estava loteado e não houve registro do compromisso de compra e venda no Cartório de Imóveis mas, nos termos do Enunciado de Súmula n.º 76 do STJ1 e do Decreto-Lei n.º 745/69, ainda assim deveria ter havido sua “constituição em mora”. O Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul negou provimento ao recurso, pois considerou que a notificação prévia não seria necessária por se tratar de mora ex re.2
No Recurso Especial aqui comentado, os compradores defenderam, dentre outros temas alheios àquele enfrentando na coluna, que o processo deveria ser extinto sem julgamento de mérito por falta de notificação prévia. Indicaram haver dissídio jurisprudencial a confirmar a imprescindibilidade da notificação, apontando, em especial, o EAREsp n.º 697.689/RS.3
O STJ não acolheu a tese, o que fez à luz do seguinte raciocínio:
Em princípio, reconheceu que era necessária a prévia “constituição em mora” dos devedores, de modo que “não haveria motivo para dispensar a notificação prévia dos devedores (..) como condição para constituí-los em mora (art. 1º do Decreto-Lei n.º 58/37) ou pelo menos para dar início à contagem do prazo da resolução contratual de pleno direito referida pelo parágrafo único do mesmo dispositivo”.
Porém, diante da alegação do vendedor de que o apartamento a ser entregue como parte do pagamento do preço não pertencia aos compradores, o cumprimento da obrigação não era mais possível. Assim, forte na premissa de que “(...) a notificação do comprador inadimplente exigida visa a conferir-lhe uma última oportunidade para purgar a mora e, assim, evitar o desfazimento do contrato”, a Terceira Turma considerou-a dispensável diante da inviabilidade prática de cumprimento da obrigação descumprida.
Em passagem descrita pelo acórdão como obiter dictum, registrou-se que foram encaminhadas notificações extrajudiciais com o objetivo de constituir em mora os vendedores e que elas constavam dos autos.
“Distinguishing”
A simplicidade dos fatos contrasta com a complexidade que se verifica na prática quanto à distinção entre a notificação premonitória, a notificação para a constituição em mora e a comunicação de exercício da resolução.
A notificação premonitória e constituição em mora.
Convém desfazer um equívoco comum, decorrente da própria terminologia empregada na legislação extravagante4, a propósito da necessidade de notificação para “constituição em mora” prévia à resolução de compromissos de compra e venda imobiliária. Leitora e leitor atentos terão percebido que a coluna utilizou a expressão entre aspas ao longo do texto: a constituição em mora não é o efeito típico da notificação premonitória (ainda que possa, admite-se, ser dela um efeito eventual).
As diferentes formas de constituição em mora no Direito brasileiro foram sistematizadas na AGIRE#142. Em suma, elas se dão com o implemento do termo certo ou por notificação para constituição em mora (art. 397 do CC5), podendo também decorrer da citação (art. 210 do CPC6 e art. 405 do CC7). Na lição de Aline Terra, no caso de atraso no pagamento do preço devido em certo termo, a “mora é ex re e resta configurada com o não pagamento, no termo ajustado, da parcela do preço nas promessas de compra e venda (...). Os efeitos da mora se produzem desde logo, e não dependem da notificação premonitória, que se destina a produzir apenas os específicos efeitos indicados na lei.”
Com efeito, quando há inadimplemento de obrigações positivas e líquidas - como é a regra das obrigações de pagamento em dinheiro em compromissos de compra e venda - a constituição em mora ocorre com o implemento do termo sem pagamento. Não é exigida a notificação prévia do devedor, que tem lugar quando não houver termo. Mas, ainda que já constituída a mora, há situações em que se demanda do credor a notificação premonitória do devedor para fins de resolução do contrato.
Como já tratei na AGIRE#104, à luz da decisão havida no REsp n.º 2.044.407/SC, há uma miríade de regras sobre a forma de implementar a resolução extrajudicial de compromissos de compra e venda. Elas variam, fundamentalmente, a depender da espécie de imóvel negociado: se urbano e loteado, aplica-se o disposto no art. 32 da Lei n.º 6.766/1979 (Lei do Parcelamento do Solo Urbano8); se imóvel não loteado, o disposto no art. 1º do DL n.º 745/1969 na redação conferida pela Lei n.º 13.097/2015; se imóvel incorporado, o disposto no art. 63 da Lei n.º 4.591/1964.9
Para além do âmbito dos contratos imobiliários, há outras normas que impõem ao credor lesado pelo inadimplemento um ato formal de comunicação ao devedor, com a concessão de prazo adicional para purgação da mora antes da resolução. É o caso, para fazer referência a exemplo bastante atual, do contrato de seguro na nova Lei de Seguro, ainda em vacatio legis (Lei 15.040/2024).10
E eis a função da notificação ou comunicação premonitória: conceder prazo adicional e final para a purgação da mora, findo o qual haverá a resolução contratual. Por ela, define-se quando a mora será transformada em inadimplemento absoluto (art. 395, parágrafo único, CC11). Nesse sentido, ensina Luca Giannotti que “prazo suplementar, prudencial ou a notificação premonitória” são todos “todos nomes de um instituto comum (Nachfrist)”.12
Não se desconhece que, quando não houver termo para pagamento, a fixação de prazo para purgação da mora poderá se dar no mesmo ato em que constituído em mora o devedor, servindo a notificação premonitória também à constituição em mora. Contudo, isso não retira a função típica da cada ato, ainda que concentrados em uma única comunicação de vontade: a constituição em mora tem o condão de fazer incidir os encargos moratórios e demais consequências do regime jurídico da mora e a notificação premonitória tem a função típica de conceder ao devedor um prazo adicional para cumprimento, sob pena da resolução.13
Notificação premonitória e notificação de resolução
A notificação premonitória também há de ser diferenciada da notificação para resolução.
Consoante Pontes de Miranda, o “direito de resolução ou de resilição é direito formativo extintivo de eficácia, que se exerceria por simples comunicação de vontade, aviso ou notificação, ou com o pedido de desconstituição (exercício da pretensão oriunda do direito de resolução ou de resilição).”14
Em regra, o direito à resolução deve ser exercido pelo lesado, seja extrajudicialmente (nos casos fundados em cláusulas resolutivas expressas), seja judicialmente (quando inexistir cláusula resolutiva expressa, aqui se enquadrando a hipótese de cláusulas “de estilo”, tratadas na AGIRE#108). Diz-se em regra, pois, conforme defende Pontes de Miranda no mesmo parecer (ainda que a posição suscite dúvidas), as partes podem afastar a necessidade de exercício do direito e torná-lo efeito automático do inadimplemento.
Seja como for, a manifestação de vontade do exercício do direto à extinção do contrato não se confunde com a notificação premonitória prevista em lei ou ajustada contratualmente por vontade das partes, que tem dupla função: de um lado, concede ao lesado um prazo adicional para cumprimento (o Nachfrist); de outro, presta-se ao cumprimento de requisito para a extinção do pactuado. Nestes casos, não basta comunicar a intenção de resolução, é preciso também conceder ao lesado um período de graça para cumprimento extemporâneo.
A distinção, como se vê, repousa fundamentalmente na concessão de prazo adicional como requisito para eficácia desconstitutiva da resolução.
A forma pela forma?
A coluna finaliza chamando atenção ao fato de que, no caso em comento, o inadimplemento ocorreu em 2013 e o acórdão do STJ é de 2025, de forma que 12 (doze) anos se passaram sem que os compradores houvessem purgado a mora (não havendo sequer notícia de que teriam ofertado a sua purgação; ao contrário, a impossibilidade de cumprimento específico parece ser confessa). A tese de defesa dos devedores girava em torno da inexistência de notificação prévia à resolução.
A eventual reversão da decisão que reconheceu o inadimplemento resolutivo importaria a realização de um ato formal que, dificilmente, seria eficaz para a solução da controvérsia. Não por acaso, foi por considerar a impossibilidade fática de cumprimento da obrigação descumprida que o STJ afastou a necessidade de notificação premonitória.15
Mas, quando ainda possível o cumprimento, é de se julgar o pedido improcedente por ausência de notificação premonitória?
Ainda que a latere de um regramento legal específico, mostra-se possível que a concessão de prazo adicional para purgação da mora (nos casos em que a sua concessão emerja da lei ou da vontade das partes) seja feita em juízo, após a citação. Nesses casos, a citação exerceria o papel da notificação ausente. Diante da inviabilidade de concessão de período de graça judicial na geralidade dos casos16, a medida somente tem sentido nos casos em que a lei expressamente exige o envio de notificação premonitória, ou seja, em que a existência do período de graça é legal ou, ainda, quando houver sido estipulado contratualmente. O tema foi tratado na já longínqua AGIRE #13, publicada nos primeiros meses da nossa newsletter, em 2022.
Renata Steiner, FCIArb.
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente e parecerista.
Conselheira do Conselho Administrativo da ARBITAC (Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial do Paraná).
Como citar: STEINER, Renata. Na pauta do STJ: notificação premonitória. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 158, 2025. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire158>. Acesso em DD.MM.AA.
Súmula 76/STJ: A falta de registro do compromisso de compra e venda de imóvel não dispensa a prévia interpelação para constituir em mora o devedor.
“E, no caso dos autos, o contrato entabulado entre as partes é claro ao dispor, em sua Cláusula Primeira, Parágrafo Segundo (f.28/30), que parte do pagamento se faria em determinada data (dezembro de 2013), pela entrega de um bem certo e determinado (apartamento), sendo dedutível que se trata de obrigação ex re.” (excerto da decisão do TJMS citado no acórdão do STJ).
“(…)A interpelação a que se refere o art. 1° do Decreto-Lei n° 745/69 é indispensável para constituição do devedor em mora. 2. Recurso especial conhecido e provido. (REsp n. 697.689/RS, relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, julgado em 19/10/2006, DJ de 19/3/2007, p. 324).
Vide, por todos, o art. 32 da Lei n.º 6.766/1979, citado na NR 8 deste texto.
Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor. Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.
Art. 240. A citação válida, ainda quando ordenada por juízo incompetente, induz litispendência, torna litigiosa a coisa e constitui em mora o devedor, ressalvado o disposto nos arts. 397 e 398 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) .
Art. 405. Contam-se os juros de mora desde a citação inicial.
Art. 32. Vencida e não paga a prestação, o contrato será considerado rescindido 30 (trinta) dias depois de constituído em mora o devedor. § 1o Para os fins deste artigo o devedor-adquirente será intimado, a requerimento do credor, pelo Oficial do Registro de Imóveis, a satisfazer as prestações vencidas e as que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionados e as custas de intimação. § 2o Purgada a mora, convalescerá o contrato. § 3o - Com a certidão de não haver sido feito o pagamento em cartório, o vendedor requererá ao Oficial do Registro o cancelamento da averbação.
Art. 63. É lícito estipular no contrato, sem prejuízo de outras sanções, que a falta de pagamento, por parte do adquirente ou contratante, de 3 prestações do preço da construção, quer estabelecidas inicialmente, quer alteradas ou criadas posteriormente, quando fôr o caso, depois de prévia notificação com o prazo de 10 dias para purgação da mora, implique na rescisão do contrato, conforme nêle se fixar, ou que, na falta de pagamento, pelo débito respondem os direitos à respectiva fração ideal de terreno e à parte construída adicionada, na forma abaixo estabelecida, se outra forma não fixar o contrato. (…)
Art. 20. A mora relativa à prestação única ou à primeira parcela do prêmio resolve de pleno direito o contrato, salvo convenção, uso ou costume em contrário. § 1º A mora relativa às demais parcelas suspenderá a garantia contratual, sem prejuízo do crédito da seguradora ao prêmio, após notificação do segurado concedendo-lhe prazo não inferior a 15 (quinze) dias, contado do recebimento, para a purgação da mora. § 2º A notificação deve ser feita por qualquer meio idôneo que comprove o seu recebimento pelo segurado e conter as advertências de que o não pagamento no novo prazo suspenderá a garantia e de que, não purgada a mora, a seguradora não efetuará pagamento algum relativo a sinistros ocorridos a partir do vencimento original da parcela não paga. § 3º Caso o segurado recuse o recebimento da notificação ou, por qualquer razão, não seja encontrado no último endereço informado à seguradora, o prazo previsto no § 1º deste artigo terá início na data da frustração da notificação.
Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários e honorários de advogado. Parágrafo único. Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos.
GIANNOTTI, Luca. Prazo suplementar, prudencial ou notificação premonitória (Nachfrist): contornos do instituto à luz da resolução por inadimplemento. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 1–31, 2023. Disponível em: https://civilistica.emnuvens.com.br/redc/article/view/940. Acesso em: 8 jun. 2025.
Nesse sentido, Pontes de Miranda ensina que o prazo suplementar ou prazo de graça (Nachfrist) é posterior à mora, ainda que possa ser concedido na mesma comunicação que a constitui: “tal prazo é necessariamente posterior à mora (Nachfrist), mas inserível na própria interpelação, se dela dependia a constituição em mora.” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XXVI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 63, § 3.102).
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Parecer n. 93. In: Dez Anos de Pareceres, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975, pp. 99-106.
É de se questionar se a alegação de impossibilidade de cumprimento da obrigação é justificativa suficiente para afastar a necessidade de notificação premonitória. No caso em tela, é verdade que a ausência de titularidade do apartamento a ser entregue como parte do preço impedia o cumprimento específico da obrigação. Mas haverá ainda outros tantos casos em que a configuração da impossibilidade da prestação será debatida e poderá ser, inclusive, objeto de demonstração em contrário pelo devedor. A provocação não vai no sentido de colocar em dúvida que, havendo efetiva impossibilidade de cumprimento, a função da notificação premonitória perde sua razão de ser. O ponto em foco é outro: a mera alegação não basta e é preciso verificar se, ao tempo em que a resolução foi operada, havia de fato impossibilidade apta a tornar inútil a concessão de prazo adicional de cumprimento.
A coluna chama atenção à alteração legislativa promovida em 2024 no art. 499 do Código de Processo Civil, que indica a concessão de prazo adicional judicial nos casos ali determinados: Art. 499. A obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente. Parágrafo único. Nas hipóteses de responsabilidade contratual previstas nos arts. 441, 618 e 757 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e de responsabilidade subsidiária e solidária, se requerida a conversão da obrigação em perdas e danos, o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela específica. (Incluído pela Lei nº 14.833, de 2024)