#31. Contrato de seguro e sub-rogação na pauta do STJ
O contrato de seguro volta ao foco da AGIRE (o tema já foi objeto das colunas #4 e #12), agora com holofotes direcionados à sub-rogação da seguradora nos direitos do segurado. A sub-rogação no âmbito do contrato de seguro está prevista no art. 786 CC1 segundo o qual, paga a indenização devida por força do contrato de seguro, a seguradora se sub-roga nos direitos e ações do segurado contra o autor do dano.
A aparente simplicidade do texto é inversamente proporcional aos desafios encontrados na sua aplicação. O tema frequentemente bate às portas dos tribunais brasileiros e desafia uma série de questionamentos para os quais o texto legal não oferece resposta de plano.
A constatação é ilustrada pelo julgamento do REsp 1.962.113/RJ, em 23 de março de 2022, em que a Quarta Turma do STJ decidiu que a sub-rogação prevista no texto legal limita-se à transferência do direito material, mas não alcança a cláusula de eleição de foro contratada entre o segurado o e autor do dano (de natureza processual).
Tratava-se de ação regressiva, ajuizada pela seguradora (que havia realizado o pagamento da indenização ao seu segurado, nos termos do contrato de seguro com ele celebrado) em face do causador do dano (estranho à relação securitária). O dano, por sua vez, ocorrera no curso de transporte internacional de cargas, cujo contrato (firmado entre segurado e causador do dano, sem participação da seguradora) continha cláusula de eleição de foro estrangeiro (no caso, Los Angeles, nos Estados Unidos). O causador do dano, réu na ação regressiva, sustentou a incompetência do Poder Judiciário brasileiro para julgamento, invocando a cláusula de eleição de foro do contrato firmado por ele e o segurado.
A decisão não coloca em dúvida a ocorrência de sub-rogação da seguradora e, por via de consequência, a sua legitimidade para ajuizamento da ação regressiva contra o causador do dano. O foco do decisum é, com efeito, a extensão em que se opera a sub-rogação.
Extrai-se do voto da Ministra Nancy Andrighi que tanto o pagamento com sub-rogação (arts. 346 a 351 CC) quanto a sub-rogação da seguradora, regulada no dispositivo antes mencionado, limitam-se à transferência da titularidade do direito material e não atingem questões processuais atinentes ao credor originário. O entendimento já foi exarado pela Terceira Turma do STJ em decisão de 2008, REsp n. 1.038.607/SP, mencionada no corpo do voto da Ministra Relatora.
Nos termos da decisão aqui comentada, embora a sub-rogação tenha consequências processuais, como a possibilidade de ajuizamento de ação em desfavor do autor do dano, tais consequências decorrem da efetivação do direito material transferido e não da oponibilidade de ajustes processuais existentes na relação original. Na linha de conclusão do acórdão, “o instituto da sub-rogação transmite apenas a titularidade do direito material, isto é, a qualidade de credor da dívida, de modo que a cláusula de eleição de foro firmada apenas pela autora do dano e o segurado (credor originário) não é oponível à seguradora sub-rogada”.
Sobram motivos para justificar a importância da decisão, que interpreta e complementa os termos do art. 786 CC e aponta para o entendimento da Corte, sua intérprete por excelência, sobre a extensão da sub-rogação. Para prover uma compreensão abrangente da visão da Corte, entretanto, exercício análogo pode e deve ser feito para além da questão específica da cláusula de eleição de foro. Dentre outros temas, faz-se menção à jurisprudência que vem sendo construída no STJ sobre o termo inicial da prescrição da pretensão de cobrança da seguradora sub-rogada, sobre a transmissão da natureza do crédito e, ainda, à cessão da cláusula compromissória. Tais temas são aqui trazidos em sobrevoo, com a finalidade de mapear o “estado da arte” do tema no STJ:
Sub-rogação e início do prazo prescricional: o entendimento do STJ tem sido no sentido de que o prazo prescricional da ação de cobrança da seguradora sub-rogada tem início quando do pagamento da indenização ao segurado. Sobre o tema, vide por todos AgInt no REsp n. 1.959.955/SP, de 23 de fevereiro de 2022: “é firme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o termo inicial do prazo prescricional do direito de a seguradora pleitear a indenização do dano causado por terceiro ao segurado é a data em que foi efetuado o pagamento da indenização securitária. Precedentes.” Trata-se de questão que merece análise à lupa, uma vez que importa a renovação do prazo prescricional (em desfavor do causador do dano) quando do pagamento da indenização securitária.
Sub-rogação e transferência da natureza jurídica da relação originária: tampouco é de hoje que o STJ tem decidido que a sub-rogação do direito à seguradora transfere também a natureza jurídica da relação originária. A questão é particularmente relevante em casos em que há relação de consumo entre o segurado (vítima) e o causador do dano. Vide, por todos, excerto da decisão do AgInt no AREsp n. 1.968.998/MT, de 15 de março de 2022: “sendo de consumo a relação entre a segurada e a concessionária, incide o Código de Defesa do Consumidor na relação entre a seguradora, que se sub-rogou nos direitos da segurada, e a concessionária.” A manutenção da mesma natureza jurídica tem especial relevo para definição do prazo prescricional aplicável, que permanece sendo aquele aplicável à relação originária (nesse sentido, com referências adicionais, vide AgInt nos EDcl no AgInt no AREsp n. 1.668.937/SP, de 15 de outubro de 2021). O entendimento também merece redobrada atenção, em especial quando se verifica doutrina de peso que sustenta que a sub-rogação não transfere características personalíssimas do crédito cedido.2
Sub-rogação e cláusula compromissória: e o que dizer da hipótese em que, no lugar da cláusula de eleição de foro, haja no contrato originário entre segurado e causador do dano previsão de solução de conflitos por arbitragem? A questão foi objeto de intensa discussão no STJ no julgamento da SEC n. 14.930/EX, em 15 de maio de 2019. Naquela oportunidade, a Corte Especial deferiu o pedido de homologação da sentença estrangeira que consideoru eficaz a cláusula compromissória em relação à seguradora sub-rogada. A decisão, por maioria, fundou-se nos limites inerentes ao juízo de homologação à luz da Convenção de Nova Iorque e, em especial, na impossibilidade de revisão do mérito da decisão a ser homologada. A despeito de tais limites terem sido a razão principal de decidir, o cotejo entre o voto-condutor, do Ministro Og Fernandes, o voto-divergente do Ministro João Otávio Noronha e o voto-vista da Ministra Nancy Andrighi é útil para revelar o entendimento dos julgadores a propósito de tema conexo, ainda que não integralmente correspondente, àquele decidido no REsp objeto desta coluna. A começar, a decisão revela que o STJ não enxerga a transmissibilidade da cláusula compromissória por sub-rogação como violadora da ordem pública, o que o voto condutor fundamentou em três considerações: "a) não há norma expressa que vede tal entendimento; b) parte da doutrina civilista considera cabível e aceitável a interpretação; c) há julgado da Corte Especial, no qual, em questão similar, foi deferida a homologação de sentença estrangeira”.3 Ademais, vê-se no voto da Ministra Nancy Andrighi a constatação sobre o caráter híbrido da cláusula de arbitragem (a cláusula compromissória como negócio jurídico foi objeto da AGIRE #9): “o compromisso arbitral é um ato jurídico de natureza híbrida, tanto de natureza processual quanto material”, o que pode apontar possível distinção com o resultado do REsp 1.962.113/RJ (que, como visto, fundamentou-se no caráter estritamente processual da eleição de foro). A transmissão do acordo de arbitragem nos quadrantes de relação securitária é discussão que não se limita ao espaço brasileiro e que tem suscitado relevantes debates na arbitragem internacional. Sob a perspectiva da arbitragem, uma visão geral dos votos da decisão da SEC n. 14.930/EX pode ser lida no post de André Abbud e Luiza Pedroso publicado no Kluwer Arbitration Blog, ao qual se remete.
Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.
§ 1º Salvo dolo, a sub-rogação não tem lugar se o dano foi causado pelo cônjuge do segurado, seus descendentes ou ascendentes, consanguíneos ou afins.
§ 2º É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo.
“Não se sub-roga o solvente no que é personalíssimo ao credor (4.a Câmara Civil do Tribunal de Apelação de SãoPaulo, 26 de fevereiro de 1942, R.dos T., 139, 88)” (PONTES, Tratado de Direito Privado, tomo XXIV, atualizado por Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery. São Paulo: RT, 2012, p. 387, § 2.963.
A discussão sobre o tema evoluiu ao longo do julgamento No voto condutor originalmente apresentado, a ausência de violação à ordem pública foi fundamentada em parecer do Ministério Público Federal. Após o voto-divergente do Ministro Noronha, que entendeu pela ofensa à ordem pública, foi apresentada retificação de voto pelo Relator, Ministro Og Fernandes, do qual se lê o trecho em destaque.