# 71. Juros e correção monetária: pedidos (e decisões) da meia-noite?
É entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça que o pedido de condenação a juros e correção monetária não está sujeito à preclusão nas instâncias ordinárias1, bem como que é cabível a condenação ao seu pagamento mesmo ausente pedido expresso2. O STJ também decidiu, em duas decisões recentes, que, mesmo quando omisso o título executivo judicial sobre a taxa de juros, a decisão sobre ela pode ser tomada em fase de cumprimento de sentença3 e que a alteração do índice definido no título pode ocorrer nesta fase, sem que haja violação à coisa julgada4.
A existência de decisões reiteradas nestes sentidos na Corte, cuja função é uniformizar a intepretação da legislação infraconstitucional, é fato inconteste, mas não deixa de causar estranheza na prática: será mesmo que a discussão sobre juros e correção monetária é tão simples quanto o conteúdo de tais decisões leva a crer?
A resposta, como provocado no título da coluna “Em foco” de hoje, é negativa. Juros e correção monetária não são (ou não deveriam ser) pedidos nem decisões da meia-noite. São questões de mérito da mais alta relevância, que têm a potencialidade de impactar o quantum indenizatório de forma substancial.
Dois pontos ilustram os principais fundamentos nos quais a conclusão repousa: os desafios da definição do índice aplicável e dos termos a quo dos juros e da correção monetária.
Juros e correção monetária: índice ou taxa aplicável
Como já tratado na AGIRE # 58, é útil distinguir a correção monetária e os juros devidos no período patológico (i.e., quando já presente o inadimplemento) daqueles que podem incidir no período da normalidade (i.e., quando o pagamento da prestação se dá no tempo, lugar e modo devidos). As linhas a seguir focam, primordialmente, no primeiro cenário.
Em relação aos juros moratórios, anota-se a persistente insegurança sobre a taxa de juros legal vigente no Brasil. A controvérsia gira em torno da melhor interpretação a ser dada ao art. 406 CC5, tema que já introduzido na AGIRE #40 (e tratado de forma mais específica, aqui e aqui). A interpretação em favor da SELIC, que antes poderia ser tida como consolidada no STJ, vê-se em estado atual de incerteza, bem representada pelo julgamento em curso do REsp nº 1795982/SP.
Cenário igualmente incerto é encontrado em relação ao índice de correção monetária, com a peculiaridade adicional de que, diferente dos juros legais, o legislador não pretendeu fixar um único índice oficial para medir a inflação no Brasil. O Código Civil, neste particular, remete a “índices oficiais regularmente estabelecidos” (arts. 3896 e 395, caput, CC7) e não são raras as dúvidas sobre os limites de sua contratação, como aquela discutida em decisão do STJ noticiada na AGIRE # 58, que considerou que a SELIC pode ser contratada como índice de correção no período da normalidade8. A falta de unidade é o que permite que diferentes Tribunais adotem índices diversos para atualização monetária das condenações. Por exemplo, o TJSP produz e utiliza a chamada “Tabela Prática”, que se funda no INPC9, enquanto o TJPR utiliza, via de regra, a média entre INPC e IGP/DI10. Em situações fáticas similares, o local do ajuizamento da ação pode levar a soluções diferentes.
Nesse contexto (apresentado de forma meramente parcelar), como considerar que a definição do índice não seja matéria de mérito a ser submetida a contraditório?
Juros e correção monetária: termo a quo
A definição do termo a quo para cobrança de juros e de correção monetária não é tarefa exercível por um “autómato da subsunção”11.
Em relação aos juros moratórios, o Código Civil endereça a questão primeiramente nos artigos 39712 e 398 CC13, os quais estabelecem três marcos temporais distintos para a mora:
No caso das obrigações negociais, o devedor é havido em mora no termo ajustado (art. 397, caput) ou no momento da interpelação, caso não haja termo (art. 397, parágrafo único);
No caso das obrigações derivadas da responsabilidade civil por atos ilícitos, o devedor é havido em mora desde o momento em que praticou o ato (art. 398, CC). A regra é reiterada pelo enunciado da Súmula 54 do STJ: “os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual.”
Tais regras são complementadas pelos arts. 405 CC14 e 240 do CPC15, que ligam a mora à citação. Conforme neles estabelecido, o devedor é havido em mora, no limite, quando da citação, caso não tenha sido nela constituído anteriormente. Essa interpretação encontra hoje amparo na parte final do art. 240 do CPC que, com enunciado simples, pôs fim à controvérsia sobre a leitura conjunta dos arts. 397, 398 e 405 do Código Civil.
Já em relação à correção monetária, o Código Civil não contém regra expressa a propósito do início de seu cômputo. Interpretação sistemática, pautada no fato de que a correção monetária é, tal como a incidência de juros moratórios, efeito do inadimplemento (arts. 389 e 395 CC), poderia levar à conclusão de que sua incidência haveria de seguir a mesma sorte dos juros moratórios. Não é o que se passa, no entanto, na prática.
Nesse sentido, destacam-se o enunciado da Súmula 362 do STJ, que dispõe que a correção monetária incide desde o arbitramento, em caso de danos extrapatrimoniais (“a correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento”) e o enunciado da Súmula 43, que dispõe que a correção é devida desde a data do “efetivo prejuízo” no caso de responsabilidade por atos ilícitos (“incide correção monetária sobre dívida por ato ilícito a partir da data do efetivo prejuízo”). Nem arbitramento nem data do efetivo prejuízo são coincidentes com os termos a quo dos juros fixados na legislação.
Menção ainda há de ser feita à Lei 6.899/1981 (muito frequentemente esquecida), cujo objeto é determinar “a aplicação da correção monetária nos débitos oriundos de decisão judicial”. Nos termos de seu art. 1º, §§ 1º e 2º16, a correção monetária de qualquer débito que resulte de decisão judicial se dá a partir de dois marcos: (i) havendo liquidez e certeza, desde o vencimento, e, (ii) nos demais casos, desde o ajuizamento da ação.
A despeito da existência de tais regras e enunciados sumulares, o tema sobre o início do cômputo de juros e de correção monetária continua a ser submetido de forma reiterada à apreciação do STJ, o que confirma que a controvérsia em torno delas se mantém.17
Tal como no item anterior, como considerar que a definição do termo a quo não seja matéria de mérito a ser submetida a contraditório?
E o que dizer destes temas na arbitragem?
Na arbitragem, o cenário antes apresentado é complementado por uma adicional complexidade.
Em primeiro lugar, diga-se que, diante da convenção de arbitragem e seus efeitos positivo e negativo18, a decisão do mérito da disputa é relegada ao Tribunal Arbitral. Juros e correção monetária fazem parte do mérito, sendo problemático admitir que sua inclusão ou sua alteração possa se feita pelo juízo estatal, em sede de cumprimento da sentença arbitral. Em outras palavras, trata-se de tema que há de ser decido em arbitragem.
Em segundo lugar, intimamente ligado à questão anterior, diga-se que a cultura de relegar tais definições para a meia-noite do processo estatal – o que, embora criticável, é compatível com a posição do STJ – deve ser evitada na condução do procedimento arbitral. Nesse ponto, é salutar refletir sobre medidas de coordenação para que os temas sejam ou possam ser endereçados pelas partes, o que pode ocorrer por iniciativa dos advogados na arbitragem ou por provocação do Tribunal Arbitral.
Em terceiro lugar, diga-se que, no silêncio da lei de arbitragem, cabem algumas adaptações, especificamente em relação aos termos a quo para incidência de juros e de correção monetária. Em especial, refere-se à adaptação sobre o marco da citação, quando aplicável aos juros (ex vi art. 405 CC) ou do ajuizamento da ação, quando aplicável à correção monetária (ex vi art. 1º, § 2º da Lei 6.899/1981, cuja aplicação na arbitragem requer, ainda, preliminar definição para saber se a arbitragem está incluída no contexto de decisão judicial a que a lei se refere).
O tema sobre os efeitos da citação foi recentemente provocado por Ricardo Aprigliano em sua tese de livre-docência na Universidade de São Paulo: “se a lei de arbitragem não afirma que a citação do requerido constitui o devedor em mora, é razoável considerar que o tribunal arbitral pode adotar outro marco temporal a partir do qual deverão incidir os juros de mora?”19. A solução sugerida pelo arbitralista é que, aceito o encargo pelos árbitros, ou seja, instituída a arbitragem, produzam-se os efeitos materiais e processuais “da citação”, retroativos à data de instauração da arbitragem20. A existência de discussão viva sobre o tema reforça que não se pode relegá-lo ao apagar das luzes da arbitragem.
Renata Steiner
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente (FCIArb).
Por todos, AgInt nos EDcl nos EDcl no REsp n. 1.727.518/SP, DJe de 9/6/2023.
Por todos, AgInt no REsp n. 1.374.977/RS, DJe de 29/5/2023.
Por todos AgInt no AREsp n. 2.257.500/SP, DJe de 1/6/2023.
Por todos, AgInt nos EDcl no REsp n. 1.952.512/RS, , DJe de 31/5/2023. Em decisão também recente, contudo, o STJ entendeu que a alteração do termo a quo para contagem dos juros em que houvesse pedido recursal importa reformatio in pejus e, portanto, não deveria ser admitida. (AgInt no AREsp n. 1.987.414/SP, DJe de 13/4/2023.
Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.
Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
A coluna, deliberadamente, deixa de tratar mais a fundo sobre a possibilidade de aplicação do índice de correção monetária contratado para o período da normalidade também para o período patológico, que deixa registrada como provocação.
“A Tabela Prática de Atualização Monetária dos Débitos Judiciais do TJSP lastreia-se na variação mensal do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), apurado este pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica)”, disponível aqui.
Embora haja decisões em sentido diverso vide, por todos, TJPR - 11ª Câmara Cível - 0065126-10.2022.8.16.0000 - Curitiba - Rel.: DESEMBARGADORA LENICE BODSTEIN - J. 19.06.2023 e TJPR - 11ª Câmara Cível - 0047490-31.2022.8.16.0000 - Curitiba - Rel.: DESEMBARGADOR FABIO HAICK DALLA VECCHIA - J. 23.11.2022.
Toma-se por empréstimo a expressão referida por Fanz Wieacker, no contexto da crítica ao positivismo jurídico: “Críticos do positivismo, como ainda Heck e Isay, chamam, portanto, ao juiz, ironicamente, um autómato da subsunção e, na verdade, esta imagem do julgador lembra remotamente as calculadoras eletrónicas da atualidade”. (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado moderno. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 498).
Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor. Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.
Art. 398. Nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em mora, desde que o praticou.
Art. 405. Contam-se os juros de mora desde a citação inicial. Sobre o artigo, Daniel Dias defendeu recentemente a sua revogação, pois o considera regra equívoca e dispensável (entendimento do qual, respeitosamente, não se compartilha). DIAS, Daniel. O marco inicial da contagem dos juros de mora: análise do art. 405 do Código Civil. civilistica.com, v. 11, n. 3, p. 1-28, 25 dez. 2022. Disponível aqui.
Art. 240. A citação válida, ainda quando ordenada por juízo incompetente, induz litispendência, torna litigiosa a coisa e constitui em mora o devedor, ressalvado o disposto nos arts. 397 e 398 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)
Art. 1º A correção monetária incide sobre qualquer débito resultante de decisão judicial, inclusive sobre custas e honorários advocatícios. § 1º Nas execução de títulos de dívida líquida e certa, a correção será calculada a contar do respectivo vencimento. § 2º Nos demais casos, o cálculo far-se-á a partir do ajuizamento da ação.
De um universo muito mais amplo, citem-se dois julgados nos quais tais temas chegaram ao STJ e foram decididos em 2023: AgInt no REsp n. 2.005.896/SC, DJe de 16/3/2023 e AgInt no AREsp n. 1.747.598/SP, DJe de 26/4/2023.
“Celebrada cláusula compromissória válida, ela produzirá os seguintes efeitos: (i) a atribuição de jurisdição aos árbitros para decidir sobre eventual disputa futura, o que se denomina efeito positivo da cláusula; e (ii) o afastamento da jurisdição estatal para decidir o mérito da disputa, correspondente ao efeito negativo. O efeito negativo da cláusula compromissória se produz independentemente de exclusão explícita da jurisdição estatal, bastando o acordo pela arbitragem” (COELHO, Eleonora; HADDAD, Ana Olivia Antunes e OLIVEIRA, Louise Maia de. Art. 4º. In: WEBER, Ana Carolina e LEITE, Fabiana de Cerqueira. Lei de arbitragem comentada. Lei 9.307/1996. São Paulo: Thompson Reuters, 2023, p. 101).
APRIGILIANO, Ricardo de Carvalho. Normas processuais aplicáveis à arbitragem. Parâmetros para a aplicação das normas processuais gerais ao processo arbitral. Tese de livre-docência em Direito Processual Civil. Universidade de São Paulo, 2022, p. 67.