# 131. Na pauta do STJ: a comoriência afasta o direito de representação?
A AGIRE de hoje mantém-se ancorada no Direito Privado, mas se arrisca em mares poucos navegados por aqui: o Direito das Sucessões (ele já apareceu nas AGIRES #79, #124, #27 e #87, essa última sob a óptica do Direito Internacional Privado).
Em setembro de 2024, no julgamento do REsp n. 2.095.584/SP1, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que a comoriência, embora afaste o direito de sucessão entre os comorientes, não afasta a sucessão por representação dos herdeiros do comoriente. Os fatos em discussão auxiliam a elucidar diversos conceitos jurídicos clássicos empregados no julgamento.
Os fatos
Em um mesmo acidente de trânsito, faleceram “Marcelo” e sua irmã “Kellen”. Marcelo não deixou descendentes, ascendentes ou cônjuge/convivente. Na linha colateral, Marcelo deixou uma irmã viva, “Karen”. Foi reconhecida a comoriência de Marcelo e Kellen.
Nos termos do artigo 8º do Código Civil, localizado na Parte Geral, “se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos.”2 O efeito prático da comoriência é não se abrir sucessão recíproca entre os comorientes.
Ao tempo de sua morte, Marcelo possuía seguro de vida, mas não havia indicado os beneficiários da indenização. De acordo com o art. 792 do CC3, não indicados os beneficiários, metade do capital é devido ao cônjuge e o restante aos demais herdeiros do segurado, “obedecida a ordem de vocação hereditária”.
A seguradora pagou a integralidade do capital segurado a Karen, única colateral viva de Marcelo. A ação, cujo julgamento é aqui comentado, foi proposta pelos filhos de Kellen (ou seja, pelos sobrinhos de Marcelo) em face de Karen (sua tia) e da seguradora, para pleitear o pagamento de metade do capital segurado que tocaria a Kellen, se viva fosse.
Em primeiro grau, a sentença reconheceu direito dos sobrinhos à metade da indenização securitária. A decisão foi reformada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que considerou afastada a transmissão de direitos entre aqueles que falecem ao mesmo tempo bem como a representação. A ela, seguiu-se recurso especial por invocação de violação dos arts. 792, 1.851 e 1.840 do CC.
Na síntese da Ministra Nancy Andrighi, relatora da decisão, “o propósito recursal é decidir se a comoriência entre o segurado e a irmã afasta o direito de representação dos filhos desta, para fins de utilização da ordem de vocação sucessória como critério para a definição dos beneficiários de seguro de vida diante da omissão do contrato.”
A interface entre direito securitário e direito das sucessões
Embora a indenização securitária não se confunda com a herança, é fato que o legislador achou por bem colmatar a omissão na indicação de beneficiários à ordem de sucessão hereditária. Assim, o já mencionado art. 792 do CC, localizado no Livro II (Direito das Obrigações) manda pagar o capital segurado ao cônjuge – regra que, segundo melhor entendimento, deve abranger também o companheiro, à luz do quanto decidido nos RE 878.694 e RE 646.721 – “e o restante aos herdeiros do segurado, obedecida a ordem da vocação hereditária”. Na ausência de cônjuge ou companheiro, é de se pagar a integralidade do capital aos demais herdeiros do segurado.
Essa interface, longe de indicar identidade entre as figuras, é mera escolha legislativa para definição da ordem dos beneficiários do seguro de vida, quando ausente escolha prévia realizada pelo segurado.
Ordem de vocação hereditária e direito de representação
Já no Livro de Sucessões, o art. 1.829 do CC4 define a ordem de vocação hereditária legal. Nos seus termos, a herança é concedida na seguinte ordem: aos descendentes (que podem ou não concorrer com os cônjuges e companheiros, a depender do regime de bens); aos ascendentes (que sempre concorrem com os cônjuges e companheiros, independentemente do regime de bens); aos cônjuges (também independentemente do regime de bens) e, por fim, aos colaterais até o quarto grau (ex vi art. 1.8395).
Descendentes, ascendentes e cônjuge são herdeiros necessários6, ou seja, não podem ser afastados da sucessão por simples desejo do autor da herança (podendo ser afastados por indignidade ou deserdação, figuras que dependem do preenchimento de pressupostos legais) e têm direito à legítima (ou seja, à metade do patrimônio do autor da herança). É o que concluí a partir da leitura dos arts. 1.8457, 1.8468 e art. 1.789 do CC.9 Os colaterais, por sua vez, conquanto sejam herdeiros legais, não são herdeiros necessários e podem ser afastados da sucessão (art. 1.850 do CC).10
Já o direito de representação ocorre quando a lei determina que “certos parentes do falecido a suceder em todos os direitos, em que ele sucederia, se vivo fosse.” (art. 1.851 do CC11).
A hipótese mais comum de representação é, sem sombra de dúvidas, aquela em que o representado é “pré-morto” em relação ao autor da herança. É o caso, por exemplo, do falecimento do avô cujo filho já havia falecido anteriormente: sendo o pai dos netos pré-morto, os netos herdam em representação ao pai pré-morto junto com seus tios. Mas não é só em caso de pré-morte que ocorre representação. Ela também se dá, por exemplo, quando o herdeiro representado ainda é vivo, mas foi declarado indigno (art. 1.816 do CC).
No Direito brasileiro, a representação na sucessão ocorre na linha descendente (art. 1.852 do CC) e na linha colateral em relação aos filhos dos irmãos dos falecidos (art. 1.853 do CC). No caso em mãos, os filhos de Kellen são sobrinhos de Marcelo e estariam legitimados (em tese) a suceder por representação de sua mãe. Mas havia uma comoriência no meio do caminho. Quid iuris?
A decisão no caso concreto
Para o Superior Tribunal de Justiça, metade da indenização securitária deveria ser paga aos filhos de Kellen, pois a comoriência não afasta o direito de representação de seus herdeiros.
Segundo o voto da Ministra Nancy Andrighi, embora a comoriência exclua efeitos sucessórios entre os comorientes, o Direito brasileiro não rejeita a possibilidade de que haja direito de representação. Partindo dessa premissa, o acórdão adotou a seguinte linha de raciocínio:
(i) o direito de representação é instituto voltado à proteção dos filhos em caso de morte prematura de seus pais, asseverando que “o objetivo do art. 1.851 do CC, ao garantir o direito de representação, é conferir um benefício aos filhos por uma morte precoce de seus pais (ascendentes de primeiro grau)”;
(ii) embora, em regra, ocorra quando houver “pré-morte”, a representação também pode se dar nos casos de morte simultânea: “... embora não seja comum, o direito de representação também pode ocorrer diante das mortes presumivelmente simultâneas do representado e do autor da herança (comoriência)”;
(iii) o não reconhecimento da representação em caso de comoriência violaria o princípio da igualdade, por tratar pessoas em situações iguais de forma diferente: “conferir tratamento jurídico diferente a pessoas que se encontram em situações fáticas semelhantes representaria afronta ao princípio da isonomia consagrado no art. 5º da CF”;
(iv) no caso de indenização securitária, a remissão feita à ordem de vocação hereditária visa à proteção daqueles que dependem economicamente do segurado: “... a finalidade da norma que prevê critérios para a definição dos beneficiários de indenização de seguro de vida, em caso de omissão contratual, é proteger aqueles com maior dificuldade de assegurar os meios necessários à sua subsistência, como se extrai da parte final do art. 792, parágrafo único, do CC” e, por fim,
(v) no caso concreto, o pedido de indenização securitária por direito de representação foi pleiteado por crianças e adolescentes, cuja proteção deve ser garantida com prioridade (art. 6º do ECA; art. 227 da CF).
Lado “A” vs. Lado “B”
Os fundamentos da decisão encontram substrato na doutrina.
O acórdão faz referência textual a Orlando Gomes, que defendia que “o direito de representação pressupõe a morte do representado antes do de cujus, admitindo-se, porém, quando ocorre a comoriência, visto não se poder averiguar, nesse caso, qual dos dois sobreviveu ao outro”.12 Também citado no acórdão, o Enunciado n. 610 das VII Jornadas de Direito Civil dispõe que “nos casos de comoriência entre ascendente e descendente, ou entre irmãos, reconhece-se o direito de representação aos descendentes e aos filhos dos irmãos”. No texto de justificativa de sua aprovação, lê-se que “não reconhecer o direito de representação aos filhos de herdeiro falecido em concomitância com o autor da herança gera uma situação de verdadeira injustiça.”
Para além da doutrina textualmente citada na decisão, a conclusão do acórdão é encontrada na doutrina de Pontes de Miranda que afirmava, em passagem breve, que “se o decujo e um irmão faleceram na mesma ocasião, presumem-se mortos simultaneamente, se não há prova de que um faleceu antes do outro. Uma vez que o decujo não tem descendentes, os filhos do irmão herdam sem ser em substituição. No caso de haver algum irmão vivo, ou alguns irmãos vivos, os sobrinhos herdam em substituição do irmão que faleceu simultaneamente com o decujo.”13 Do mesmo modo, Maria Celina Bodin de Moraes, Heloisa Helena Barboza e Gustavo Tepedino ensinam que “o direito de representação também é admitido se ocorrer comoriência…”.14
Na jurisprudência anterior do Superior Tribunal de Justiça, encontra-se decisão monocrática de 2018 que, conquanto não tenha conhecido do recurso especial, apontou que “como se vê, o artigo 11 - ao dispor, genericamente, em que casos se dá a comoriência e o artigo 1.620, ao conceituar o direito de representação [ambos do Código Civil de 1916] -, não apresentam conteúdo normativo apto a embasar a alegada impossibilidade de representação em caso de comoriência.” (REsp n. 1.545.964, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe de 13/04/2018.)
O art. 1.620 do CC16 corresponde ao atual 1.854 do CC, antes mencionado nessa coluna, que dispõe que o direito de representação confere aos representados o direito à herança que teria se o representado fosse vivo.15 Por ele, considera-se qual seria o direito do representado se vivo fosse ao tempo da abertura da sucessão. Da sua redação, é verdade, não se afasta expressamente a representação em caso de comoriência: o único critério da regra é que o representado não seja vivo ao tempo da abertura da sucessão. E o comoriente, que morre ao mesmo tempo, preenche esse pressuposto.
O alcance das regras de representação, por sua vez, deve ser conjugado com aquela constante da Parte Geral do Código Civil, art. 8º do CC, do qual se extraí que, em caso de comoriência, como já se vai longeva tradição no Direito brasileiro, afasta-se o direito sucessório entre os comorientes. Não é, aliás, por outro motivo que a declaração da comoriência só tem sentido útil e prático se houver, entre os falecidos, relação de sucessão.16 Não se pode excluir, de plano, que a interpretação em conjunto desses textos legais possa levar à conclusão de que a comoriência afastaria o direito de representação. A conclusão, não há dúvidas, poderá ser muitas vezes injusta - como o seria no caso de Marcelo, Kellen e Karen, analisado sob a perspectivas dos sobrinhos. Dura lex, sed lex?
Para o Superior Tribunal de Justiça, como visto, a injustiça do resultado que negue o direito de representação faz com que o processo interpretativo seja revisitado para se alcançar solução diversa (e igualmente defensável à luz do direito posto). Nesse processo, entrecruzam-se temas fundamentais de Parte Geral e Direito das Sucessões (além de uma pitada de Direito das Obrigações, embora casual no caso julgado), o que por si só é um convite a reflexão mais aprofundada sobre o sentido da decisão.
Renata Steiner, FCIArb
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente e parecerista.
Conselheira do Conselho Administrativo da ARBITAC (Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial do Paraná).
Como citar: STEINER, Renata. Na Pauta do STJ: a comoriência afasta o direito de representação? In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 131, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire131>. Acesso em DD.MM.AA.
REsp n. 2.095.584/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 10/9/2024, DJe de 12/9/2024.
Em 1937, Carvalho Santos afirmava que, no passado, a comoriência “não era vista senão como uma especie de curiosidade juridica, tão raramente tinha aplicação”, mas que “hoje, que essa theoria apresenta uma importancia digna de registo, adquirindo vida e possibilidade de constante applicação, á vista dos progressos, e do habito que se vae arraizando entre todos os povos, dos transportes collectivos, na dos extensão consideravel que contemplamos, já por meio dos aviões, já por meio do automovel, para não referir os velhos processos de navegação e transporte ferroviario.” (CARVALHO SANTOS, J. M. de. Código Civil brasileiro interpretado. Introducção e Parte Geral. Volume I. 3ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937, pp. 310-311, texto mantido com a acentuação original).
Art. 792. Na falta de indicação da pessoa ou beneficiário, ou se por qualquer motivo não prevalecer a que for feita, o capital segurado será pago por metade ao cônjuge não separado judicialmente, e o restante aos herdeiros do segurado, obedecida a ordem da vocação hereditária. Parágrafo único. Na falta das pessoas indicadas neste artigo, serão beneficiários os que provarem que a morte do segurado os privou dos meios necessários à subsistência.
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: (Vide Recurso Extraordinário nº 646.721) (Vide Recurso Extraordinário nº 878.694) I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III - ao cônjuge sobrevivente; IV - aos colaterais.
Art. 1.839. Se não houver cônjuge sobrevivente, nas condições estabelecidas no art. 1.830, serão chamados a suceder os colaterais até o quarto grau.
É discutível na o companheiro ou a companheira são herdeiros necessários. Apesar da declaração de inconstitucionalidade da diferença de tratamento sucessório entre cônjuge e companheiros, nos já mencionados RE 878.694 e RE 646.721, o Supremo Tribunal Federal não se manifestou sobre a qualificação dos companheiros como herdeiros necessários, mesmo após embargos de declaração opostos para essa finalidade.
Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.
Art. 1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.
Art. 1.789. Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança.
Art. 1.850. Para excluir da sucessão os herdeiros colaterais, basta que o testador disponha de seu patrimônio sem os contemplar.
Art. 1.854 Os representantes só podem herdar, como tais, o que herdaria o representado, se vivo fosse.
GOMES, Orlando. Sucessões. 17. ed. Atualizador Mario Roberto Carvalho de Faria. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p.38 (e-book). Acesso pela Plataforma Minha Biblioteca.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo LV. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1968, § 5.626, pp. 274-275 (no texto, “decujo” vem grafado dessa forma).
BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de e TEPEDINO, Gustavo. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Volume IV. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 664.
A regra análoga no Código Civil de 1916 tinha a seguinte redação “Art. 1.620. Dá-se o direito de representação, quando a lei chama certos parentes do fallecido a succeder em todos os direitos, em que elle succederia, se vivesse” Ela era criticada, pois “a expressão de que o representante succede nos «direitos do representado, não é tambem correcta, porque o re-presentado, desde que é fallecido, não tem direito algum. A lei deveria ter dito "nos direitos que o representado teria, se vivesse" (BARROS, Hermenegildo. Do Direito das Sucessões. In: LACERDA, Paulo de. Manual do Còdigo Civil brasileiro. Volume XVII, Rio de Janeiro: Jachinto dos Santos, 1918, p. 620).
Para explicação mais profunda, inclusive para compreensão de casos em que, embora haja sucessão recíproca, desnecessário determinar quem faleceu antes (por serem idênticos os herdeiros dos comorientes), remete-se a CARVALHO SANTOS, J. M. de. Código Civil brasileiro interpretado. Introducção e Parte Geral. Volume I. 3ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937, pp. 310-311