#76. Na pauta do STJ: cláusula penal e indenização suplementar
Os fatos discutidos no REsp 2025166/RS, julgado pela Terceira Turma do STJ em 13 de dezembro de 2022, eram singelos: as partes celebraram contrato de compromisso de compra e venda de imóvel, que fora entregue com três anos de atraso. Em razão disso, os compradores ajuizaram ação com pedido de reparação de danos materiais (consistentes no custo de aluguel de outro imóvel) e morais (sob alegação de que o imóvel havia sido adquirido para uso durante o período escolar da filha dos compradores, o que foi inviabilizado com o atraso), mas não pleitearam o pagamento da penalidade contratualmente ajustada para o caso de mora (a cobrança de cláusula penal em caso de atraso no âmbito dos contratos imobiliários foi tema da AGIRE #73).
No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o pedido de danos extrapatrimoniais foi acolhido, mas o pedido de danos patrimoniais foi julgado improcedente, ao entendimento de que não é possível deixar de exigir a cláusula penal prevista contratualmente para, no seu lugar, exigir indenização. Nos termos da decisão: “a cláusula penal visa exatamente indenizar e reparar lucros cessantes ou valores despendidos a título de aluguel, motivo pelo qual é descabida outra indenização, sob pena de bis in idem”. Seguiu-se, então, o recurso especial em comento, no qual o entendimento foi reformado para reconhecer o direito à indenização pelos danos patrimoniais no lugar da cláusula penal ajustada.
Conforme o acórdão, relatado pelo Ministro Villas Bôas Cueva, a existência de cláusula penal moratória não impede a cumulação com lucros cessantes nos casos em que a penalidade contratada não guarde equivalência com o valor locatício do imóvel. A decisão remete ao Tema 970, ainda que para aplicar conclusão diversa. Em tal repetitivo, foi fixada a tese de que “a cláusula penal moratória tem a finalidade de indenizar pelo adimplemento tardio da obrigação, e, em regra, estabelecida em valor equivalente ao locativo, afasta-se sua cumulação com lucros cessantes.”
O distinguishing focou no valor ajustado da cláusula penal: se equivalente ao valor da locação do imóvel não entregue, a cumulação seria vedada; se não equivalente, a cumulação deveria ser admitida. Como no caso em tela a cláusula penal tinha valor inferior ao locatício, pois fixada em 0,5% sobre o valor pago e não sobre o valor do próprio bem, decidiu-se que, “em sendo possível a cumulação, é lícita a pretensão formulada exclusivamente quanto à reparação dos danos materiais, em respeito ao princípio dispositivo”.
Cláusula penal, indenização suplementar e regime optativo…
Dentre outras questões relevantes sobre o sempre atual tema da cláusula penal (que já foi tema da AGIRE #65 e AGIRE #41), o acórdão aponta os holofotes ao disposto no art. 416, parágrafo único do CC, que trata sobre a possibilidade de indenização suplementar à cláusula penal e tem a seguinte redação:
Art. 416. Para exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo.
Parágrafo único: ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente.
Ele também toca, porém, tema não tratado diretamente pelo dispositivo legal e que diz respeito à possibilidade de escolha entre demandar a reparação ou a cláusula penal. Isso porque, segundo o que restou decidido pelo STJ, a existência de cláusula penal sem a previsão de indenização suplementar abriria à parte lesada a possibilidade de optar pelo regime comum da indenização. A questão ainda gera controvérsias na doutrina, que não serão enfrentadas nesta coluna.1
Para compreensão exata da decisão tomada, é útil rememorar o caminho percorrido pelo STJ no tratamento da cláusula penal em contratos imobiliários.
Cláusula penal moratória (em contratos imobiliários) no STJ: o caminho percorrido até o Tema 970
A possibilidade de cobrança de indenização suplementar em contratos imobiliários que contenham cláusula penal moratória foi objeto da decisão Tema 970, em 2019, afetado para “definir acerca da possibilidade ou não de cumulação da indenização por lucros cessantes com a cláusula penal, nos casos de inadimplemento do vendedor em virtude do atraso na entrega de imóvel em construção objeto de contrato ou promessa de compra e venda.” A questão, como se vê, era semelhante àquela debatida nos fatos antes descritos, pois dizia respeito a contratos imobiliários em que ajustada cláusula penal para lidar com o atraso na entrega do imóvel. Não por acaso, o processo de origem foi suspenso durante a tramitação do repetitivo, no aguardo da decisão do STJ.
Após realização de audiência pública para oitiva da comunidade jurídica, sagrou-se vencedor o entendimento, antes reproduzido, no sentido de que a penalidade moratória tem finalidade indenizatória e não é, em regra, cumulável com lucros cessantes.
Segundo o entendimento fixado, a cláusula penal moratória, inserta em contratos imobiliários, pode ter finalidade indenizatória e se submeter à regra do art. 416 CC. Tal releva para afastar entendimento sobre a finalidade puramente punitiva de referida cláusula penal que, à altura da afetação da temática, era encontrado na Corte.
Nesse sentido, ora admitindo expressamente uma finalidade exclusivamente punitiva da cláusula penal moratória, ora apontando para sua finalidade distinta da fixação de perdas e danos, pode-se fazer menção às seguintes decisões, todas citadas na proposta de afetação provinda do Ministro Luis Felipe Salomão (ProAfR no REsp nº 1.635.428/SC):
(i) REsp 1.355.554 (2012), “(...) a cominação contratual de uma multa para o caso de mora não interfere na responsabilidade civil decorrente do retardo no cumprimento da obrigação que já deflui naturalmente do próprio sistema”;
(ii) REsp 968.091/DF (2009) “a instituição de cláusula penal moratória não compensa o inadimplemento, pois se traduz em punição ao devedor que, a despeito de sua incidência, se vê obrigado ao pagamento de indenização relativa aos prejuízos dele decorrentes (...).” e
(iii) AgInt no AREsp 969.357/DF (2017): “na hipótese de descumprimento contratual por atraso na entrega do imóvel, são cumuláveis a multa moratória prevista na cláusula penal e a indenização por lucros cessantes, dadas as naturezas distintas dos institutos.”
Na doutrina, antes da conclusão do julgamento do Tema 970, já havia vozes que afirmavam que “a obrigação de reparação que pode advir da simples mora, salienta-se que a cláusula penal moratória, assim como a compensatória, não representa pena imputada ao devedor que retarda ou deixa de cumprir adequadamente a prestação sem fulminar o interesse do credor na prestação, mas apenas o sucedâneo dos prejuízos advindos da mora...”2
Como o enunciando do Tema 970 deixa entrever, entretanto, o reconhecimento da natureza indenizatória está vinculado ao valor da cláusula penal e somente encontra aplicação quando o seu valor for equivalente ao valor da locação do imóvel.
A menção ao valor locativo como parâmetro da análise, por sua vez, remete à jurisprudência há muito consolidada na Corte de que o dano decorrente do atraso na entrega do imóvel é calculado pelo valor que se poderia obter com a locação do imóvel que não foi entregue. Há inúmeras decisões que consideram que tal dano é presumido e que, portanto, nem mesmo precisa ser demonstrado (vide, por todos, EREsp 1341138/SP).
Daí vai que o Tema 970, em suma:
(i) admitiu a aplicação do art. 416, parágrafo único, CC também às cláusulas penais moratórias, pois tais cláusulas podem ter finalidade indenizatória;
(ii) transportou o entendimento sobre o dano decorrente do atraso na entrega do imóvel, calculado com base no valor da locação do imóvel não entregue, para o âmbito da cláusula moratória e da definição de sua natureza; e
(iii) mediante essa operação de transporte definiu que, havendo previsão de cláusula penal moratória em valor equivalente ao locativo, a função indenizatória estaria confirmada e, com isso, afastada a indenização suplementar (salvo previsão contratual em contrário).
É certo que a jurisprudência do STJ foi construída em torno de contratos imobiliários, fato corroborado pela redação do enunciado do Tema 970, que tem seu âmbito de aplicação bem delimitado àqueles contratos. Não se pode negligenciar, no entanto, o caminho percorrido pela Corte para depurar a natureza da cláusula penal ajustada para lidar com o problema de atraso. Nesse caminho, o fiel da balança foi a equivalência entre a cláusula penal moratória e o valor do dano causado pelo atraso: será que tal parâmetro deve ser aplicado para definir a natureza da penalidade para além dos contratos imobiliários?
Ao fim e ao cabo, a provocação aponta o dedo para uma ferida ainda aberta no Direito brasileiro e que diz respeito à definição da natureza da cláusula penal, caminho que pode ser percorrido à luz de (ao menos) dois critérios: de um lado, deve-se analisar a relação entre a cláusula penal e o cumprimento específico do contrato e, de outro, analisar a sua função. Isso, porque a cláusula penal pode ser ajustada para incidir no lugar do cumprimento específico (ou in natura) ou para vir ao lado do cumprimento específico. Questão diversa é saber se, em qualquer uma dessas modalidades, ela é contratada como a finalidade indenizatória (tantas vezes também referida como compensatória, termo que não é inequívoco) ou com finalidade puramente coercitiva, sancionatória ou, para alguns, punitiva (tantas vezes referida como não-compensatória, termo que tampouco é inequívoco).3
Tema de meia-noite: juros e correção monetária
Na AGIRE #71 lançou-se a provocação sobre o tratamento conferido pelo Direito brasileiro aos juros e à correção monetária, ali designados como pedidos e decisões de meia-noite. Comprovando a atualidade da provocação, ao julgamento aqui comentado seguiram-se embargos de declaração para lidar, justamente, com essas questões, que não haviam sido apreciadas (EDcl no Resp n. 2.025.166/RS).
Os declaratórios foram acolhidos em 13 de março de 2023 para fixar os seguintes termos a quo e índices: (i) juros de mora sobre o valor da condenação calculados pela SELIC (conforme Embargos de Divergência nº 727.842/SP) desde a data da citação, por se tratar de ilícito contratual; (ii) correção monetária desde a data em que o lucro deveria ter sido auferido (conforme Enunciado da Súmula n. 43 STJ4) até a citação, quando a dívida passará a ser corrigida pela SELIC “que é composta de juros moratórios e de correção monetária, ficando vedada sua cumulação com qualquer outro índice de atualização monetária”; e (iii) sobre os honorários de sucumbência, incidência de juros pela SELIC desde o trânsito em julgado, vedada sua cumulação com correção monetária.
A decisão, por um lado, confirma que a posição do STJ ainda é a de que a taxa legal de juros no Direito brasileiro (ex vi art. 406 CC5) é a SELIC. Por outro, deixa várias dúvidas em aberto. À leitora e ao leitor da AGIRE ficam três novas provocações: se há prazo para entrega do imóvel, em qual momento há a constituição da mora do vendedor? Sendo a mora constituída com o inadimplemento (como parece ser o caso, ex vi art. 397 caput, CC6), há espaço para aplicar a regra do art. 405 CC7, que remete a juros de mora desde a citação? E, por fim, ao se definir que o dano decorrente do atraso é equivalente ao valor das locações, está-se diante de dano líquido (ou liquidável por simples cálculos) ou ilíquido, esse último autorizando remeter ao art. 405 CC?
Renata Steiner
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente (FCIArb).
Sobre o regime da cláusula penal ser ou não optativo vide, por todos: (a) Silvio Venosa, defendendo que haja opção do credor, ao menos no caso da cláusula dita compensatória, vinculada pelo autor ao inadimplemento absoluto: “na multa compensatória, a opção será do credor. Se ele entender que seus prejuízos pelo inadimplemento foram mais vultosos que o valor da multa, partirá para a via das perdas e danos. Se, por outro lado, entender que a multa lhe cobre os prejuízos, ou, ainda, se não deseja submeter-se a custosa e difícil prova de perdas e danos, optará pela cobrança da multa. e, de outro, negando o direito de opção, uma vez pactuada a cláusula penal” (VENOSA, Silvio. Direito Civil - Obrigações e Responsabilidade Civil - Vol. 2. 22. ed. Disponível em: Minha Biblioteca. Grupo GEN, 2021, p. 335) e (b) Giovanni Nanni, defendendo não haver regime optativo, uma vez pactuada a cláusula penal: “dado o caráter à forfait da cláusula penal, o credor não pode renunciar a ela para requerer o ressarcimento integral do dano, segundo as regras gerais (…) e “a pena é o substitutivo da indenização. Mesmo que o valor da cláusula penal seja tímido em relação aos danos causados ao credor, ele não terá a faculdade de optar pelas perdas e danos judiciais” (NANNI, Giovanni. Art. 416. In: NANNI, Giovanni. (Coord.). Comentários ao Código Civil: direito privado contemporâneo. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, pp. 673 e 684).
ABILIO, Vivianne da Silveira. Cláusulas penais moratória e compensatória – critérios de distinção. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 120.
A temática sobre a natureza e as funções da cláusula penal suscitou inúmeras e ricas discussões ao longo da disciplina “Contratos Empresariais” na T40 da Pós-Graduação em Direito Empresarial da FGV-Law SP, que ministrei entre os dias 03 de maio e 14 de junho de 2023. Registro, aqui, meu agradecimento às alunas e aos alunos pelas participações nos debates.
Súmula n. 43, STJ: Incide correção monetária sobre dívida por ato ilícito a partir da data do efetivo prejuízo.
Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. (Vide ADIN 5867) (Vide ADC 58) (Vide ADC 59) (Vide ADPF 131)
Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.
Art. 405. Contam-se os juros de mora desde a citação inicial.