#92. A interação da cláusula de declarações e garantias com a qualificadora “to the best of knowledge”
Como diria Oscar Wilde, “o conhecimento pode ser fatal”,1 mas a ignorância – esta sim! – é quase sempre uma benção. Nem sempre. Inspirada pela sagacidade do escritor irlandês, a coluna de hoje volta, mais uma vez, ao tema das cláusulas de declarações e garantias em contrato de M&A, já tratado na AGIRE#18 e na AGIRE#74, mas aqui com outro foco. A pergunta que se pretendia fazer para provocar os leitores da AGIRE, agora em vias de ser estampada no texto, desdobra-se imediatamente em duas (e, mais adiante, em outras tantas que passam a “povoar” os subtítulos da coluna):
1.ª) Diante de uma cláusula de declarações e garantias, se ficar demonstrado que a declaração prestada pelo vendedor é falsa, adianta ele comprovar que desconhecia a falsidade para se eximir das consequências contratualmente ajustadas?
2.ª) Qual é a importância da qualificadora “to the best of knowledge” na cláusula de declarações e garantias?
As funções da cláusula de declarações e garantias
Importada dos modelos contratuais da common law – embora nem sempre “tropicalizada” a contento, tal qual a cláusula de “take or pay”, objeto da AGIRE#88 –, a cláusula de declarações e garantias pode exercer múltiplas funções (informativa, probatória, conformativa etc.2), dentre as quais se destaca a função assecuratória, que desponta sempre que as partes atribuem a essa disposição a finalidade de proteger o comprador contra o risco de a sociedade-alvo não apresentar as qualidades enunciadas pelo vendedor.
Com essa roupagem, a cláusula de declarações e garantias configura autêntica “(...) promessa de que determinado fato é verdadeiro ou de que esse fato será verdadeiro”.3 Por meio desta cláusula, portanto, “garante-se que determinado estado de fato corresponde ou corresponderá, conforme declarado no contrato, à realidade”.4 O intérprete deve, por isso mesmo, ter muito cuidado com esse tipo de disposição, pois, para além de ser importante instrumento de gestão de risco –o vendedor assume o risco de as declarações não se revelarem verdadeiras –, interfere diretamente na precificação do negócio.
O elemento subjetivo importa?
Considerando a proeminente função assecuratória que pode exercer, se eventual afirmação prestada no bojo da cláusula declarações e garantias revelar-se falsa, pouco importará, para a incidência da garantia, a constatação acerca do conhecimento ou não do vendedor sobre a falsidade da informação prestada. Isso, porque “a garantia elimina a discussão acerca do elemento subjetivo (estado psíquico, conhecimento ou culpa) de quem faz a afirmação”.5
A falta do elemento subjetivo não eximirá o vendedor de responder, porque os remédios contratualmente previstos precisam atuar em conformidade com a função garantista da cláusula. Assim, ainda que o vendedor consiga comprovar que não sabia – ou que não tinha como saber – que a afirmação proferida era falsa, o fato é que os remédios contratuais incidirão, independentemente do elemento anímico. Afinal, “quem promete garantia promete com abstração de dolo ou culpa”.6 Há, evidentemente, outras formas indiretas de se estabelecer a responsabilidade objetiva do vendedor, como a inserção, no contrato de compra e venda de participação societária, de uma cláusula de pró-sandbagging (mais uma dessas “importadas”),7 para quem defende a validade desse tipo de ajuste no direito brasileiro.8
Importa no regime legal?
O tema tangenciou a já longínqua AGIRE#74, que tratou do confronto entre a disciplina dos vícios redibitórios e a cláusula de declarações e garantias. Naquela oportunidade, fez-se referência a uma discussão ainda latente na doutrina: diante de um vício oculto que atinja a sociedade-alvo, é possível aplicar a disciplina geral dos vícios redibitórios quando o contrato não contém disposição específica sobre o remédio aplicável à hipótese? O assunto é controvertido,9 mas o fato é que o regime legal também é objetivo, como se infere da leitura do art. 443 do Código Civil.10 Aliás, no direito romano já era assim.11 A responsabilidade pelos vícios redibitórios não resulta de culpa, dolo ou má-fé. A disciplina dos vícios redibitórios incide independentemente de qualquer elemento subjetivo, mas a responsabilidade do alienante pode agravar-se na presença dele, já que nesse caso passa a responder também por perdas e danos, se provados estiverem os danos sofridos pelo comprador.
Para que serve a qualificadora “to the best of knowledge”?
Nos contratos de compra e venda de participação societária, a inserção da qualificadora “to the best of knowledge” no bojo das cláusulas de declarações e garantias – seu locus de atuação – tem por objetivo suavizar os efeitos da declaração prestada.12 Segundo o Collins Dictionary: “If you say that something is true to your knowledge or to the best of your knowledge, you mean that you believe it to be true but it is possible that you do not know all the facts”.13 Daí já se extrai a função da qualificadora: atenuar a higidez da declaração prestada, como forma de assegurar a sua exatidão. De fato, ao atrelar a informação ao “melhor conhecimento” da parte que a prestou (normalmente, o vendedor), a qualificadora abranda a afirmação, o que pode repercutir também no plano da responsabilidade.
O vendedor presta apenas as informações que já são do seu conhecimento, sem realizar esforço adicional para confirmá-las, transferindo, assim, para o comprador ônus de demonstrar que a falsidade já era conhecida do vendedor. Exatamente por isso, a presença da qualificadora dificulta a responsabilização daquele que prestou informação falsa, embora, em rigor, não atinja propriamente o funcionamento da garantia.14 Como explica a doutrina, sob a perspectiva funcional, o sentido da expressão “the best knowledge of the seller”, no Brasil, “poderia ser definido como uma presunção relativa de boa-fé subjetiva, ou seja, uma presunção relativa de desconhecimento, por parte do declarante, de determinado vício da coisa por ele não informado”.15
O que revela a ausência da qualificadora?
Por outro lado, a ausência da qualificadora evidencia a assunção, pelo vendedor, do risco quanto à eventual falsidade objetiva das informações prestadas na declaração, independentemente do seu conhecimento. A ausência da qualificadora, portanto, é também digna de nota, porque torna mais evidente que o vendedor deveria ter confirmado a veracidade das informações a serem prestadas antes de as assegurar perante o comprador. E se não a confirmou e a declaração se mostrou posteriormente falsa, o comprador pode exigir os remédios contratualmente ajustados. Como já afirmado na AGIRE#74, as partes normalmente buscam maior previsibilidade na solução das disputas, então as consequências da não veracidade do quanto declarado costumam vir previstas no próprio contrato, mas a aparente autossuficiência da cláusula não impede a aplicação dos remédios legais, desde que presentes os seus requisitos.
Como a cláusula de garantia se articula com a indenizatória?
Comprovada a desconformidade entre a realidade e o quanto afirmado na declaração, incidem, como consequência, os remédios previstos no contrato, tal como acordado pelas partes. O fato revelador que, no período de vigência da garantia, traz à tona a falsidade da afirmação não gera, tecnicamente, inadimplemento,16 sendo antes apenas o suporte fático de incidência (pressuposto) para o surgimento de obrigação ulterior, que normalmente é o pagamento de uma soma em dinheiro já prefixada no contrato. Tal montante pode ser estabelecido também por meio de fórmulas matemáticas (e, não raras vezes, vem balizado por uma cláusula limitativa do dever de indenizar, cujo controle de validade depende da aferição de certos requisitos). Nada impede, porém, que as partes prevejam outras consequências, como a redução de preço, o desfazimento do contrato ou a própria correção in natura da falsidade.17
A ignorância não vence, nem convence
A depender das circunstâncias, a ignorância pode até ser mesmo uma benção, como diz o ditado popular, mas nem sempre: a falta de conhecimento sobre a falsidade da declaração não exime o vendedor de responder pela garantia prestada. A ignorância não vence a natureza da cláusula, se esta for mesmo de garantia. Também não convence o intérprete atento às nuances e às funções da cláusula. No Direito, como na vida, ora a ignorância ajuda, ora atrapalha – maldição mesmo é a burrice.
Gisela Sampaio da Cruz Guedes
Professora de Direito Civil da UERJ. Coordenadora do PPGD-UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada, parecerista e árbitra.
Como citar: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. A interação da cláusula de declarações e garantias com a qualificadora “to the best of knowledge”. In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 92, 2023. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire92>. Acesso em DD.MM.AA.
Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray, tradução de Enrico Corvisieri, São Paulo: Nova Cultural, 2003, p. 219.
Nesse sentido: “Para além de configurar o fornecimento de uma informação e documentá-la (funções informativa e probatória), as declarações e garantias ainda podem conformar a obrigação do declarante ao especificar as qualidades da participação societária objeto da alienação (função conformativa) ou instigar assunção de obrigação de garantia pelo declarante (função assecuratória)” (Giacomo Grezzana, A cláusula de declarações e garantias em alienação de participação societária. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 69).
Judith Martins-Costa, “Contrato de compra e venda de ações. Declarações e garantias. Responsabilidade por fato de terceiro. Inadimplemento, pretensão, exigibilidade, obrigação. Práticas do setor e usos do tráfego jurídico. Parecer”. In: Rodrigo Rocha Monteiro de Castro, Luis Andre Azevedo e Marcus de Freitas Henriques (coord.), Direito societário, mercado de capitais, arbitragem e outros temas: homenagem a Nelson Eizirik. São Paulo: Quartier Latin, 2021, pp. 75-76.
Judith Martins-Costa, “Contrato de compra e venda de ações. Declarações e garantias. Responsabilidade por fato de terceiro. Inadimplemento, pretensão, exigibilidade, obrigação. Práticas do setor e usos do tráfego jurídico. Parecer”, cit., p. 76.
Carlos Portugal Gouvêa e Mariana Pargendler, “As diferenças entre as declarações e garantias e os efeitos do conhecimento”. In: Carlos Portugal Gouvêa, Mariana Pargendler e Maurizio Levi-Minzi, Fusões e aquisições: pareceres. São Paulo: Almedina, 2022, p. 293.
Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado: direito das obrigações, t. 38. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 427.
Uma explicação rápida para quem não tem familiaridade com o tema: “Muito comum em contratos de M&A, a cláusula de SANDBAGGING foi importada do direito norte-americano e basicamente visa autorizar (cláusula pro-sandbagging) ou impedir (clausula anti-sandbagging) que o comprador, após o fechamento do negócio (closing), se valha de uma cláusula de declaração ou garantia (representations and warranties), para buscar indenização decorrente de uma violação da qual teve ciência antes do fechamento da operação. Imagine-se a hipótese na qual o vendedor declare em contrato, no signing, que a empresa não possui passivos fiscais. Porém o comprador, no curso da due diligence descobre que em verdade existem passivos fiscais que nem o vendedor tinha ciência. Tem o comprador a obrigação de informar ao vendedor sobre tal passivo, renegociando eventualmente o preço da aquisição, ou pode ficar silente, alegando tal vício apenas após o fechamento do negócio, passando a cobrar então multas contratuais previstas para a hipótese de violação das representations and warranties? É justamente esta circunstância que as partes visam solucionar com a adoção de uma cláusula pro ou anti sandbagging, autorizando ou não o comprador a ter tal conduta pós closing. Mas se tal cláusula, nem nos Estados Unidos é amplamente aceita (na California prevalece a interpretação anti-sandbagging, enquanto em Nova York e em Delaware prevalece a regra pro-sandbaggingg), a questão fica ainda mais complexa quanto esta situação é ‘importada’ para operações regidas pela lei brasileira” (Paulo André M. Pedrosa, “M&A - Cláusula de SANDBAGGING e sua validade no Brasil”. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/depeso/347056/m-a--clausula-de-sandbagging-e-sua-validade-no-brasil >. Acesso em 15.09.2023).
Nessa linha, defende-se que “(...) a intenção das partes, ao negociar e pactuar as cláusulas de declarações e garantias, bem como cláusula que prevê a irrelevância de eventual conhecimento do comprador quanto à inexatidão ou inveracidade de qualquer delas para fins indenizatórios, pode ter sido, precisamente, tornar objetiva a responsabilidade do vendedor – e, portanto, sua apuração – em relação ao conteúdo de todas elas. Nesse sentido, segundo o pactuado, todas consubstanciariam uma garantia de veracidade do vendedor, e ensejariam a reponsabilidade dele, independentemente de elemento subjetivo, em caso de não correspondência com a realidade” (Maíra de Melo Vieira Temple, “Validade e eficácia da cláusula denominada pró-sandbagging nos contratos de compra e venda de participação societária sujeitos ao direito brasileiro”, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 178-179. São Paulo: Expert, ago./2019 - jul./2020, pp. 369-370).
Sobre essa discussão, vale conferir: Teresa Negreiros, “Dos vícios redibitórios e da sua articulação com as cláusulas de declarações & garantias em contratos de compra e venda de empresas”. In: Giovana Benetti, André Rodrigues Corrêa, Márcia Santana Fernandes, Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke e Laura Beck Varela (org.), Direito, Cultura, Método: leituras da obra de Judith Martins-Costa. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2019; e Marcelo Vieira Von Adamek; André Nunes Conti, “Vícios redibitórios na alienação de participações societárias”, Revista de Direito Societário e M&A, v. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan.-jun./2023.
Código Civil: “Art. 443. Se o alienante conhecia o vício ou defeito da coisa, restituirá o que recebeu com perdas e danos; se o não conhecia, tão-somente restituirá o valor recebido, mais as despesas do contrato”.
Nas palavras de Carvalho Santos: “A ignorância de tais vícios pelo alienante não o exime de responsabilidade (...). Já no direito romano, o vendedor respondia pelos vícios ocultos da coisa vendida, mesmo quando lhe fossem desconhecidos. Em nosso direito, a regra é ampliada aos contratos comutativos. A garantia a que é obrigado o alienante subsiste ainda quando ele ignora o vício oculto. É um risco do negócio, que à semelhança de outros, recai sobre ele, com justo fundamento na segurança dos contratos. (...) A prestação da garantia por vício da coisa não é cumprimento ou execução do contrato, mas resulta do dever legal de garantia” (J.M. Carvalho Santos, Código Civil brasileiro interpretado, v. 15. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989, pp. 360-361).
As qualificadoras do conhecimento podem apresentar-se de diversas formas, como explicam Carlos Portugal Gouvêa e Mariana Pargendler: “A inserção de qualificadoras de conhecimento em cláusulas de declarações e garantias pode ocorrer de várias formas, como, por exemplo, ‘no conhecimento do vendedor’ (to seller’s knowledge), ‘no melhor conhecimento do vendedor’ (to the best of seller’s knowledge), ou ‘no melhor conhecimento do vendedor e após investigações diligentes’ (to the best of seller’s knowledge and after diligente investigation)” (“As diferenças entre as declarações e garantias e os efeitos do conhecimento”, cit., p. 294).
Verbete “to the best of your knowledge”, do Collins Dictionary. Disponível em: https://www.collinsdictionary.com/dictionary/english/to-the-best-of-your-knowledge#google_vignette. Acesso em 15.09.2023.
Giacomo Grezzana, “O qualificador de conhecimento (knowledge qualifier) e suas relações com a cláusula de declarações e garantias em alienações de participação societária”, cit., p. 247.
Gustavo Tepedino, Soluções práticas – Pareceres – Relações obrigacionais e contratos, v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 437.
Veja-se, por todos, Fernanda Martins-Costa, “Ensaios sobre o descumprimento de cláusula de declarações e garantias em alienações de participações societárias com fechamento diferido”. In: Aline Miranda Valverde Terra e Gisela Sampaio da Cruz Guedes (coords.), Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios, v. 1. Rio de Janeiro: Processo, 2020, pp. 750-751.
Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França e Giacomo Grezzana, “Consequências da falsidade de declarações e garantias em contratos de M&A: a chamada ‘indenização’ e os tetos de ‘indenização’”, Revista do Advogado, n.º 158, jul./2023, p. 48.