#126. O que é reparar o dano?
A pergunta não encontra resposta direta em nosso Código Civil.
No processo de construção de uma solução satisfatória à questão é preciso, de um lado, depurar o conceito de dano patrimonial (foco da exposição que segue) e, de outro, a função que a responsabilidade civil exerce na reparação do dano.
O conceito de dano patrimonial é inferido do Título IV do Livro de Obrigações e, mais especificamente, destes três artigos legais:
art. 389, caput, CC1, que elenca o pagamento de perdas e danos como uma (não a única!2) das consequências do descumprimento de obrigações;
art. 402 CC3, que define perdas e danos a partir da tradicional bipartição nas rubricas “danos emergentes” (o que efetivamente se perdeu) e “lucros cessantes” (o que razoavelmente deixou de lucrar);
art. 403 CC4, que define as regras de causalidade, dispondo que são perdas e danos indenizáveis aquelas que decorrem “direta e imediatamente” da inexecução.
Desse conjunto normativo, emerge uma primeira conclusão: reparar o dano patrimonial é pagar ao lesado os danos emergentes e os lucros cessantes decorrentes do evento lesivo.
Já a função da indenização é obtida nas disposições do Título IX do Livro de Obrigações, dedicado às regras de responsabilidade civil. Em especial, ali se lê no art. 944, caput, CC5 que a indenização deve ser medida, em princípio, pela extensão do dano. O mandamento é visto como fundamento legal do princípio da reparação integral do dano no Direito brasileiro.6
À primeira conclusão, então, adere-se uma segunda: reparar o dano é apagar os efeitos do evento lesivo, afinal, é essa a função indenitária que decorre do princípio da reparação integral.
E eis que chegamos ao cerne da questão que se pretende enfrentar: não é incomum a afirmação de que a reparação integral serve para conduzir o lesado ao status quo ante ou seja, o estado em que o lesado estava antes do evento lesivo.7
Mas será mesmo que essa afirmação é adequada?
Entendo que não. Prefiro ver a reparação do dano como voltada a conduzir o lesado, pela via indenizatória, à situação hipotética em que ele estaria não fosse o evento lesivo.
Não se trata de mero jogo de palavras: em muitos casos, o lesado pode ser adequadamente indenizado voltando (ficcionalmente, é verdade) ao estado em que estava antes do evento lesivo e consinto ser essa a situação mais recorrente na responsabilidade extracontratual. Via de regra, a reparação do dano extracontratual se dá com a abstração de algo que ocorreu e não deveria ter ocorrido.8 Entretanto, há diversas outras situações em que a indenização se dá pela colocação do lesado em uma situação na qual nunca esteve antes, a exemplo do que ocorre na generalidade dos casos de responsabilidade civil contratual. Ora, a indenização por falta de cumprimento da prestação, por exemplo, “(...) confere ao lesado algo que não tinha antes”9, justamente, a vantagem esperada do cumprimento que não ocorreu. A hipótese é de adição, não mais de abstração.
Passo a explicar com detalhamento o alcance dessa afirmação.
Antes de prosseguir, é preciso dizer que, mesmo quando juristas afirmam que a reparação do dano se volta ao status quo ante, não entendo que estejam com isso desconsiderando (i) que tal retorno é meramente ficcional10 (como, aliás, é a reparação do dano no geral) e (ii) que os lucros cessantes, definidos por sua própria natureza como vantagens não percebidas, possam ser indenizados. Da forma como enxergo, a afirmação peca diante de seu caráter simplificador e unilateral, mas não carrega em si uma sugestão de limitação das rubricas que compõem a indenização.
A situação hipotética sem o dano: exemplos do direito estrangeiro
Ao menos dois ordenamentos jurídicos da família romano-germânica contêm mandamentos legais no sentido aqui defendido.
O primeiro deles é Portugal, que dispõe no art. 562º do Código Civil:
Art. 562º (Princípio geral). Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Ao se referir à regra, Antunes Varela alertava, com precisão, o direcionamento a ser dado: “note-se que a lei (art. 562) manda reconstituir, não a situação anterior à lesão, mas a situação (hipotética) que existiria, se não fora o facto determinante da responsabilidade”.11
O segundo deles é a Alemanha, em que § 249 (1) do BGB (Código Civil alemão) dispõe que:
§ 249 (1) Quem estiver obrigado pela reparação dos danos deve restituir o estado que existiria se a circunstância que obriga a indemnizar não tivesse ocorrido. (em tradução livre)
O dispositivo é tido como fundamento, naquele país, do princípio da reparação integral.12
Ambos têm em comum a adoção de uma lógica comparativa, no sentido de que a reparação olhará para a situação real do lesado e para a situação em que ele deveria estar. O ponto de partida da reconstrução – que será definida pelas regras de causalidade – é o evento que obriga a reparação ou a circunstância que obriga a indenizar.
No Direito brasileiro, é verdade, não há uma previsão legal equivalente que a acolha a mesma lógica comparativa. Ainda na vigência do Código Civil de 1916, Clóvis do Couto e Silva afirmou as vantagens extraídas de tal método e sustentou que “seria, aliás, curial que nosso Código houvesse adotado os princípios constantes do Código Civil alemão”.13
Na minha visão, o mandamento inserido no artigo 944, caput, pelo legislador de 2002 exerce função análoga àquela desempenhada pelos dispositivos antes citados, constantes dos Direitos português e alemão. Ao afirmar que a indenização se mede pela extensão do dano, o dispositivo tem como regra subjacente a busca pela situação em que o lesado estaria sem o dano.
Mas é preciso prosseguir: as regras portuguesa, alemã e brasileira são de cunho geral e a definição da situação a que será reconduzido somente ocorre quando da aplicação da norma.
A situação hipotética sem o dano: a centralidade do conceito de interesse na reparação do dano
A essa altura, a leitora e o leitor mais atentos já devem ter antecipado o tema com o qual vou concluir o artigo: os conceitos de interesse positivo e de interesse negativo.
O par de conceitos já esteve presente na AGIRE em algumas oportunidades (AGIRES #44, #62, #100.1, #100.2 e #100.3). Para os limites deste texto, é suficiente rememorar o seguinte:
na reparação do interesse positivo, a indenização tem como escopo colocar o lesado na situação em que estaria se o contrato tivesse sido cumprido e
na reparação do interesse negativo, a indenização tem como escopo colocar o lesado na situação em que estaria se não houvesse confiado na conclusão válida do contrato.
Ambos representam, por razão de síntese14, a situação hipotética sem o dano: uma positiva e outra negativa em relação ao contrato.
A lógica comparativa é inerente a esses conceitos e pode ser compreendida pelo termo “interesse” que lhes empresta significado: as nomenclaturas interesse contratual positivo e interesse contratual negativo foram propostas em 1861 por Rudolph von Jhering. Àquele tempo, a palavra “interesse” estava umbilicalmente vinculada ao conceito de id quod interest. O sentido desta expressão, também histórico, remete à obra de Friedrich Mommsen15, publicada anos antes e na qual id quod interest é lido como inter-est ou “o que está entre” (em suma, uma fórmula comparativa).16 É com esse significado que Jhering os emprega.
Voltemos, agora, ao direito estrangeiro, que liga os dispositivos antes mencionados ao interesse indenizável.
No Direito alemão, Dieter Medicus e Stefan Lorenz tratam do disposto no § 249 do BGB e diferenciam os danos delituais (ou extracontratuais) daqueles contratuais, vendo nestes a dicotomia de interesses: “nos danos delituais é, em regra, claro o que se deve prestar como reparação de danos à luz do § 249, I: deve-se restituir a circunstância que teria lugar sem a ocorrência do delito”. O duplo direcionamento da reparação de danos surge para além dele, na responsabilidade de âmbito obrigacional (negocial ou pré-negocial). A afirmação é compreensível pois, somente nesses casos é que o parâmetro de comparação ao contrato mostra-se presente.17
No Direito português, Vaz Serra ensinava que “hipótese diferencial é, não só abstractiva, mas aditiva”.18 Mais recentemente, Menezes Cordeiro – embora seja crítico, em parte, aos conceitos de interesse positivo e de interesse negativo – afirma que o interesse reparável deve ser obtido in concreto, à luz do preenchimento da causalidade de acordo com a regra do art. 562 do Código Civil lusitano, antes mencionado, bem como do art. 563, regra de causalidade que impõe a reparação dos danos que o lesado “provavelmente não teria sofrido” não fosse o evento lesivo.19
E no Direito brasileiro?
Bem, como tenho defendido já há alguns anos, no caso de ilícitos havidos no iter contratual, a situação hipotética à qual o lesado será conduzido poderá ser negativa ou positiva em relação ao contrato, tudo a depender do evento lesivo e do conjunto de consequências aplicável. Veja-se o exemplo significativo do dano contratual, o qual (em regra) não será reparado por uma abstração, e sim por uma adição: apagar os efeitos do evento ilícito (inadimplemento) é colocar o lesado na situação em que ele estaria com o cumprimento que, apenas por ficção, poderia ser chamado de status ad quem.
A adoção dos conceitos de interesse positivo e de interesse negativo em solo brasileiro, antes de criar o direito, reconhece um fato: a reparação de danos visa mesmo conduzir o lesado a um estado hipotético em que ele deveria estar, não fosse o evento lesivo.
Finalizo advertindo que esse estado é dito hipotético porque não existe, mas deveria e poderia existir na vida real: “o qualificativo hipotético que designa essa situação à qual o lesado deve ser reconduzido refere-se ao fato de que ela não existe na realidade, mas deveria existir, ou existiria, não fosse a ocorrência lesiva que ocasionou o dano; não se confunde, em absoluto, com uma situação irreal ou imaginária que, sem paralelo real, não poderia ser tomada como parâmetro adequado para pautar a reparação de danos.”20
Renata Steiner, FCIArb
Professora de Direito Civil na FGV-SP. Doutora em Direito pela USP.
Árbitra independente e parecerista.
Conselheira do Conselho Administrativo da ARBITAC (Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial do Paraná).
Como citar: STEINER, Renata. O que é reparar o dano? In: AGIRE | Direito Privado em Ação, n.º 126, 2024. Disponível em: <https://agiredireitoprivado.substack.com/p/agire1226>. Acesso em DD.MM.AA.
Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros, atualização monetária e honorários de advogado.(Redação dada pela Lei nº 14.905, de 2024).
Dentre as consequências não mencionadas no dispositivo está o cumprimento específico da obrigação: “o nosso Código não o diz, expressamente. Mas, ao consignar o princípio segundo o qual o não cumprimento da obrigação dá ao credor o direito de exigir as perdas e danos (art. 1.056), não exclui, nem podia excluir, o direito que lhe assiste de exigir, antes de tudo, que a obrigação se cumpra” (ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 3.ed., atualizada. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Jurídica e Universitária, 1965, pp. 23-24). O tema já esteve por aqui, nas colunas AGIRE #8 e #17.
Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar
Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.
Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Princípio da reparação integral. Indenização no Código Civil. 1ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 51.
Somente a título exemplificativo, vide (a) FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson e BRAGA NETTO, Felipe. Curso de Direito Civil. 3. Responsabilidade civil. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 49. (“o princípio da reparação integral possui por finalidade repor o ofendido ao estado anterior à eclosão do dano injusto, assumindo a árdua tarefa de transferir ao patrimônio do ofensor as consequências do evento lesivo, de forma a conceder à vítima uma situação semelhante àquela que detinha”); (b) TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código Civil Interpretado vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, p. 859 (“a idéia consiste em atribuir ampla proteção à vítima, empregando-se todos os esforços para fazê-la retornar ao status quo anterior ao prejuízo”) e (c) SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Princípio da reparação integral. Indenização no Código Civil. 1ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 19 (“o princípio da reparação integral ou plena, também chamado de equivalência entre o dano e a indenização, como indicado por sua própria denominação, busca colocar o lesado em situação equivalente à que se encontrava antes de ocorrer o ato ilícito (...)”). Os trechos citados não representam a integralidade do pensamento dos autores.
Friso que esse direcionamento não é absoluto. Quero com isso dizer que não há mandamento de que a responsabilidade extracontratual esteja, necessariamente, vocacionada a um (ficcional) “retorno ao estado anterior”. Basta para demonstrar isso rememorar a tese de Claus-Wilhelm Canaris a propósito da tutela positiva e negativa da confiança. Segundo o jurista alemão, a responsabilidade pela confiança (que se aplica tanto no âmbito da responsabilidade extracontratual quanto na contratual) comportaria duas vias distintas de proteção: o lesado pode tanto ser reconduzido à situação na qual confiou (tutela positiva da confiança), como àquela em que estaria se conhecesse a realidade e, com isso, não tivesse nem sequer confiado (tutela negativa da confiança). Tal também se aplica à responsabilidade extracontratual. (CANARIS, Claus-Wilhelm. Die Vertrauenshaftung im deutschen Privatrecht. C.H.Beck: München, 1971, p. 5).
STEINER, Renata C. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 20.
SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Princípio da reparação integral. Indenização no Código Civil. 1ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 48-49.
ANTUNES VARELA, João de Matos. Das Obrigações em geral, vol. I. 10.ed., revisa e actualizada. Coimbra: Almedina, 2005, p. 905.
PALANDT/Christian Grüneberg. Bürgerliches Gesetzbuch, 74. Neubearbeitete Auflage, Munique: C.H. Beck, 2015, p. 283 (comentários prévios ao § 249).
COUTO E SILVA, Clóvis. Dever de indenizar. In: FRADERA, Vera Maria Jacob de (org.). O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 200-201.
JHERING, Rudolf von. Culpa in contrahendo ou indemnização em contratos nulos ou não chegados à perfeição. Tradução e nota introdutória de Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2008. p. 12-13.
MOMMSEN, Friedrich. Beiträge zum Obligationenrecht. Zur Lehre von dem Interesse. Braunschweig, C.U. Schmeschte und Sohn, 1855.
Como já tive oportunidade de afirmar “não é por acaso que o verbete id quod interest no Novissimo Digesto é explicado por Emilio Betti mediante textual referência às expressões propostas por Jhering. Por elas – afirma −, permite-se distinguir duas situações distintas de recondução do contratante que sofre desilusão das suas expectativas no curso contratual” (STEINER, Renata C. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 44). Remeto ao livro para maior aprofundamento sobre o conceito de interesse, especialmente ao Capítulo 1.
MEDICUS, Dieter e LORENZ, Stefan. Schuldrecht. Allgemeiner Teil. München: C.H.Beck, 2008, p. 365.
VAZ SERRA, Adriano. Obrigação de indemnização (Colocação. Fontes. Conceito e espécies de dano. Nexo causal. Extensão do dever de indemnizar. Espécies de indemnização). Direito de abstenção e remoção. In: Boletim do Ministério da Justiça, n. 84, março de 1959, p. 72.
MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Da boa fé no Direito Civil. 2ª reimpressão. Coimbra: Almedina, 2001, p. 585 e MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil Português II. Direito das Obrigações. Tomo IV. Cumprimento e não cumprimento. Transmissão. Modificação e extinção. Garantias. Coimbra: Almedina, 2010, p. 157.
STEINER, Renata C. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 151.